Primeira mulher a assumir a presidência da Fiocruz em 120 anos da existência da instituição, Nísia Trindade faz um balanço do trabalho da fundação no combate à epidemia de covid-19. "Não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz." Em entrevista exclusiva ao jornal <b>O Estado de S. Paulo</b>, a socióloga diz que a pandemia é o evento histórico que inaugura o século 21.
<b>O relatório que vocês encaminharam ontem (quarta-feira) ao Ministério Público recomenda o lockdown para o Rio. Essa é a única forma de impedir o colapso do sistema de saúde?</b>
O isolamento é a melhor medida que temos disponível para frear a disseminação da doença e esse isolamento mais rigoroso é o que pode evitar um longo período de falta de leitos, médicos e equipamentos. Como sabemos, os efeitos das atitudes que tomamos hoje serão sentidos em uma ou duas semanas, que é o tempo entre o contágio e a evolução do quadro da doença. Então, é muito importante agirmos agora. Outro aspecto fundamental é que as medidas restritivas devem vir acompanhadas de apoio às populações vulneráveis para que possam cumprir o isolamento, particularmente aqueles que dependem de trabalho informal ou precário, bem como suporte a pequenas empresas que geram empregos e podem sofrer grande impacto da pandemia.
<b>A Fiocruz foi denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) o laboratório de referência para covid-19 na América Latina. É um reconhecimento importante desse papel histórico?</b>
Sim, é um importante reconhecimento, sobretudo para o nosso laboratório de vírus respiratórios e sarampo, que se ergueu no fim dos anos 1970, durante a epidemia de meningite. Significa o reconhecimento ao nosso trabalho de formação de pesquisadores, treinamento para diagnóstico e identificação do vírus Sars-Cov-2 e o papel central nas pesquisas sobre a mutação do vírus em territórios brasileiro e latino-americanos, que é importante para o desenvolvimento de vacinas, além de orientar protocolos e padrões de trabalho para os laboratórios de toda a região. A Fiocruz também é responsável pela criação de um pensamento integrado na pandemia, de juntar todas as peças de todos os trabalhos. Isso não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.
<b>Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores estão sendo duramente atacados…</b>
O trabalho da ciência voltado para a saúde sempre gera conflitos. Há muitas incompreensões, muitos interesses envolvidos. Mas toda a nossa argumentação está baseada em dois pilares, excelência da pesquisa e ética.
<b>A senhora tem comparado o momento atual ao da gripe espanhola de 1918. A situação só é comparável à dessa outra epidemia, de um século atrás?</b>
É mais um paralelo que uma comparação; são mundos muito diferentes, a atividade científica é diferente. Mas fiz o paralelo pensando no impacto social, econômico e na vida das pessoas de uma pandemia de grande letalidade. Há vários estudos mostrando que, na gripe espanhola, houve medidas de isolamento, fechamento de atividades de serviço, e também muita controvérsia. A gripe espanhola é uma grande referência para os virologistas, ela matou mais do que a guerra, e tem uma importância crucial para os grandes movimentos da sociedade e possíveis mudanças. Como a gripe espanhola, a covid-19 é uma doença nova, que se dissemina em alta velocidade e para a qual não temos vacina nem medicamentos. Mas temos hoje algo importante que não tínhamos no passado: um sistema universal de saúde e instituições mais robustas, como a Fiocruz, institutos de pesquisa, universidades.
<b>Qual a perspectiva para o fim da epidemia?</b>
Enquanto não tivermos uma vacina ou um porcentual alto de imunidade da população – lembrando que ter anticorpos não implica necessariamente imunidade -, e com o comportamento que vem sendo observado na nossa população, tudo aponta para um problema de saúde pública de longa duração.
<b>Quanto tempo a senhora estima para termos uma vacina, uma vez que a própria Fiocruz participa dos esforços mundiais pelo desenvolvimento de uma?</b>
De 18 a 24 meses. Mas a vacina precisará ser acessível a todos, ou não resolverá o problema. Não adianta termos uma vacina caríssima.
<b>O vírus Sars-Cov19 já sofreu mutações no Brasil? Quais as implicações dessas mudanças?</b>
Nossos estudos já apontam mutações – que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestação clínica relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus ainda é um grande desconhecido, um estrangeiro.
<b>A senhora mencionou que as pandemias, historicamente, têm um papel fundamental nas mudanças sociais. Qual seria o dessa pandemia?</b>
(O historiador Eric) Hobsbawm falava que os grandes marcos dos séculos não seriam os marcos de cronologia imediata, mas grandes eventos que marcam esses séculos. Não tenho dúvida que essa epidemia é o grande marco do século 21, que inaugura o século 21. E ela nos mostra a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, da globalização sem cuidado às populações, do turismo intenso. Mas ainda não é possível pensar, como seria desejável, que teremos um mundo mais solidário. Nos deparamos com a fragilidade da civilização, mesmo no caso de nações mais ricas e sobretudo no caso de um país tão desigual como o nosso.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>