Aos gritos de "nós somos sauditas e fazemos o que queremos", centenas de torcedores do Newcastle foram ao estádio St. James Park no dia 7. Celebravam como se fosse um título não só a compra do clube por um conglomerado bilionário, mas também a saída do então dono do time, o empresário inglês Mike Ashley. Tinham seus motivos.
Os Magpies, como são conhecidos, deixam para trás uma era de baixo investimento, times tecnicamente limitados e dois rebaixamentos para entrar em um novo capítulo de sua história. O Newcastle foi comprado por 300 milhões de libras (cerca de R$ 2,2 bilhões) por um grupo liderado pelo Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita, administrado pelo príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, que adquiriu 80% das ações. O clube da Inglaterra é considerado agora o mais rico do mundo, já que o patrimônio de Bin Salman é estimado em US$ 400 bilhões (R$ 2,1 trilhões), dez vezes superior ao então mais rico, o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, dono do Manchester City.
A principal crítica à compra do Newcastle se deu pelo histórico saudita de desrespeito aos direitos humanos. O príncipe é acusado de ordenar o assassinato do jornalista do The Washington Post Jamal Khashoggi, crítico ao governo, em 2018, na embaixada saudita na Turquia.
A Premier League, liga que organiza o Campeonato Inglês, sofreu grande pressão de organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, além da ex-noiva do jornalista morto, Hatice Cengiz, para que vetasse a negociação.
A compra do Newcastle por um fundo saudita administrado pelo príncipe herdeiro do país é definida por especialistas como sportswashing, ou seja, o uso estratégico e político do esporte para melhorar sua reputação no mundo, escondendo atos e ações negativas de seus governos.
Pesquisador do esporte pela UERJ e organizador do livro "Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol", Irlan Simões explica que a prática não é uma tendência recente. "Se apossar de clubes de futebol para fins políticos não é algo novo. Muitos times já foram usados como instrumento de política e imagem pública. É a ideia de projetar poder a partir da sedução que um time de futebol tem", explica Simões.
A Arábia Saudita sediou uma edição da Supercopa da Espanha e outra da Itália nos últimos anos, além de outros eventos esportivos. Em dezembro, receberá sua primeira corrida de Fórmula 1. O país também planeja se candidatar à sede da Copa do Mundo de 2030.
Bin Salman viu nos últimos anos lideranças dos vizinhos Emirados Árabes Unidos e Catar comprarem Manchester City e Paris Saint-Germain, respectivamente, ganhando sucesso esportivo e projeção internacional. Agora, o governo saudita entra para o grupo dos "clube-Estado".
CONCORRÊNCIA – Outro país vizinho detém ações de um adversário do Newcastle na Inglaterra. Em 2008, o Manchester City foi comprado por 266 milhões de libras pelo Abu Dhabi United Group, do sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan – membro da família real dos Emirados Árabes Unidos e vice-primeiro-ministro do país.
A empresa possui 78% das ações do City Football Group (CFG), rede com dez clubes espalhados em cinco continentes, além de parcerias com o Bolívar, da Bolívia, e o Vannes, da França. O Manchester City pulou de patamar em pouco tempo, graças aos investimentos na casa de 1 bilhão de euros, desde o início da compra.
Em 2011, foi a vez de o Catar iniciar sua projeção internacional por meio do futebol. A Qatar Sports Investments (QSI), empresa ligada ao emir catari Tamim bin Hamad al Thani, comprou 70% das ações do Paris Saint-Germain por 50 milhões de euros. Desde então, o time recebeu investimentos pesados, dominou o futebol do país e agora, com Neymar e Lionel Messi, sonha finalmente em ganhar a Liga dos Campeões.
O Bahrein, por meio do fundo de investimentos soberano do país, pagou 5 milhões de euros no ano passado por 20% das ações do modesto Paris FC, da segunda divisão francesa. Os investimentos ainda são tímidos, mas o objetivo é alcançar a primeira divisão. A frase "Explore o Bahrein" é exposta na camisa do clube.
OPOSIÇÃO – A prática de países se tornarem proprietários de clubes europeus também é recebida com críticas no meio do futebol. O presidente da LaLiga, que organiza o Campeonato Espanhol, Javier Tebas, é um dos opositores. "Se isso não acabar, o futebol vai ter 20 sheiks em 20 clubes diferentes dominando tudo", disse ao diário espanhol Sport.
Na Espanha, o governo impôs aos clubes na década de 1990 a migração para o modelo empresarial para tentar reduzir seus graves problemas financeiros. As exceções ficam por conta de Barcelona e Real Madrid, além de Athletic Bilbao e Osasuna, que são associações sem fins lucrativos.
Relatório publicado pela empresa de auditoria Ernst & Young neste ano apontou que na primeira divisão da Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália, 92% dos clubes são empresas, enquanto na segunda divisão esse porcentual é de 96%. À exceção da Inglaterra, os donos são predominantemente empresários do próprio país: 58% possuem alguma ligação pessoal com o clube ou são empresários da região.
O futebol inglês viu uma nova etapa de sua história surgir em 2003, quando o bilionário Roman Abramovich, do setor de petróleo e gás, comprou o Chelsea por 140 milhões de libras. O ex-governador de uma província russa e amigo de Vladimir Putin, investiu em grandes contratações ao longo dos anos e viu o time levantar o troféu da Liga dos Campeões em duas oportunidades.
O futebol italiano conta com muitos proprietários nascidos no próprio país, como a poderosa família Agnelli, dona de empresas como Fiat e Ferrari, que colocou a Juventus no topo nos últimos anos.
Mais recentemente, sete dos 20 times da primeira divisão passaram a pertencer a investidores dos Estados Unidos. Eles foram atraídos pelo custo inferior ao de ingleses, mas também pela possibilidade de recolocar a liga italiana de volta ao topo da Europa.