Uma análise feita em projeto do Cato Institute em 3,2 mil acusações criminais contra policiais dos EUA entre abril de 2009 e dezembro de 2010 identificou que só 33% das acusações resultaram em condenação, dos quais 36% cumpriram tempo de prisão. Se consideradas estas taxas, conservadoras perto do número de outros institutos que compilam dados sobre o tema, os cidadãos comuns são condenados e cumprem pena no mínimo o dobro de vezes mais do que policiais.
O projeto Mapping Police Violence traça um cenário de ainda maior impunidade e estima que 99% das mortes por policiais entre 2013 e 2019 acabaram sem acusação criminal.
O promotor-geral de Minnesota, Keith Ellison, endureceu nesta quarta-feira a acusação contra o ex-policial Derek Chauvin, que matou George Floyd no dia 25 ao pressionar o joelho no pescoço dele por cerca de oito minutos, apesar de o homem negro de 46 anos dizer que não conseguia respirar. Chauvin teve sua acusação ampliada para homicídio em segundo grau – assassinato não premeditado, com negligência e risco de matar e causar danos corporais à vítima. Inicialmente, a acusação era homicídio em terceiro grau, quando o responsável agiu sem intenção.
Manifestantes e parentes de Floyd pedem acusação de primeiro grau, quando há clara intenção de matar. No caso de Minneapolis, o objetivo de matar ainda deve ser discutido, mas ainda não ficou claro para a Promotoria. O promotor afirmou que Chauvin pode ser acusado pelo homicídio em primeiro grau se houver evidências. "Neste momento, levamos à máxima acusação ética que pudemos", afirmou. Os outros três policiais que ajudaram Chauvin a imobilizar o ex-segurança no chão também foram acusados por Ellison.
Os manifestantes nas ruas exigem uma resposta não apenas para o caso de Floyd. Nos EUA, poucos policiais respondem criminalmente pelo abuso da força e, quando acusados, raramente são condenados.
"Estou cansado de ver a polícia fazer o que quiser sem consequência", afirma Jayden Ford, de 18 anos, que participou dos protestos em frente à Casa Branca, em Washington. Os manifestantes pedem não só a responsabilização da polícia, mas também prestação de contas, mecanismos de controle e transparência, como forma de conter o racismo e o abuso da violência.
"Sem justiça, sem paz", gritam os manifestantes nos Estados Unidos, com pedido de responsabilização da polícia por atos de violência e racismo cometidos contra negros no país. O mote do movimento, uma releitura de frase dita por Martin Luther King em 1967, mostra que os atos continuarão enquanto a percepção sobre impunidade policial não se alterar. Nos EUA, poucos policiais respondem criminalmente pelo abuso da força e, se acusados, raramente são condenados.
"O que aconteceu com George Floyd é um catalisador, mas as pessoas não vão deixar de protestar pelo fato de uma acusação passar de terceiro para segundo grau. É só parte de um quebra-cabeças. As pessoas estão nas ruas por tudo o que acontece nas comunidades e não vira notícia. Mudar a acusação não vai aliviar a raiva e a demanda", afirma o ex-promotor Adam Foss e responsável pelo Prosecutor Impact, que treina novos promotores para lidar com questões como pobreza e desigualdade racial na Justiça criminal.
A polícia matou três pessoas por dia nos EUA em 2019. Os negros, apesar de representarem 13% da população, são mais de 30% das vítimas. Uma análise do <i>Washington Post</i> com pesquisadores do Bowling Green State University mostra que 54 policiais foram formalmente acusados por disparos que causaram morte entre "milhares" de registros em uma década – de 2005 a 2015.
Dos 54, 21 foram absolvidos. Na "vasta maioria" dos casos analisados, a pessoa morta estava desarmada. Em três a cada quatro casos, o policial era branco. Dois terços dos disparos de policiais brancos foram direcionados a negros. Nenhum policial negro atirou de forma a matar uma vítima branca no período analisado.
Um relatório da União Americana de Liberdades Civis de 2017 para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos relatava a falta de mecanismos de controle da polícia americana. O problema, aponta a organização, começa na falta de estrutura legal para responsabilização criminal e passa pela formatação do sistema de justiça.
A acusação de policiais é feita por promotores, que muitas vezes têm proximidade com os policiais envolvidos. Mesmo quando há acusação criminal, há tendência de júris de serem favoráveis aos policiais. Entre 2008 e 2012, a cidade de Dallas, no Texas, teve 175 júris para avaliar crimes cometidos por policiais. Só um resultou em condenação.
Nos casos em que os promotores estaduais não dão andamento à investigação, o caso pode passar a ser conduzido por procuradores federais, como foi com a morte de Eric Garner, que deu força ao movimento Black Lives Matter em 2014. Entre os crimes por policiais analisados na esfera federal, o tempo médio de investigação é de três anos e 96% das possíveis acusações acabam rejeitadas, segundo dado citado pelo <i>Washington Post</i>.
Em 1989, a Suprema Corte americana tomou uma decisão controvertida e decidiu que um oficial deve agir de forma "objetivamente razoável" de acordo com as circunstâncias que percebeu na ocasião, sem olhar os atos em retrospectiva. A decisão é vista como uma das que dificulta a punição policial pelo abuso da força. Em uma decisão anterior, a Corte estabeleceu que um oficial não pode usar a força de maneira letal para prevenir uma fuga, exceto se tiver "crença de boa-fé" que há uma significativa ameaça de morte ou de lesão corporal.
No caso de Floyd, o vídeo não deixa dúvidas que o americano estava vulnerável à ação policial, sem nenhuma capacidade de reação ou de ameaça aos quatro policiais que se ajoelharam em cima dele, enquanto ele foi colocado deitado de barriga para baixo no asfalto. Se a morte de Floyd não é exceção, a diferença desta vez é que tudo está gravado e disponível na internet.
Os problemas no controle da polícia não estão apenas na dificuldade de avançar com acusações criminais no caso de crimes cometidos por oficiais. Há dificuldade em coletar dados da corporação e em manter uma estrutura interna de autocontenção. Dos 50 maiores departamentos de polícia do país, apenas seis possuem conselhos formados por civis com autoridade para impor medidas disciplinares.
Os pesquisadores do centro de estudo sobre o tema da New York University, chamado Policing Project, também defendem que "problemas sistêmicos e estruturais não serão corrigidos apenas com a responsabilização". O professor de direito da universidade e uma das lideranças no grupo, Barry Friedman, afirma que as regras normais de governança democrática "desaparecem" quando se fala da polícia nos EUA.
Em comunicado após a morte de Floyd, os acadêmicos do Policing Project afirmam que o país "deixou a polícia livre para se regular". "Embora alguns deles realmente tentem, muitos não estão ouvindo o que as comunidades que estão policiando têm a dizer", afirmam.
Adam Foss teve destaque ao usar métodos alternativos de pena na Justiça criminal. Há uma tensão, segundo ele, em argumentar que não se deve usar o sistema de Justiça como resolução de problemas e, ao mesmo tempo, defender a responsabilização de policiais que cometem crimes, pois é quase inexistente no país.
"É por isso que é preciso ter empatia também com os policiais. É uma cultura que tem de mudar, há ensinamentos trazidos desde quando somos crianças. A responsabilização e a prestação de contas é uma forma de mudar as coisas, mas precisamos debater como contratamos, treinamos, testamos e possibilitamos desenvolvimento profissional desses policiais. Em 2006, um relatório do Departamento de Justiça apontou que policiais recebem mais de 100 horas de treinamento em manejo de armas e autodefesa e apenas 8 horas de treinamento em mediação de conflitos e relação com a comunidade."