Mundo das Palavras

Euclides, o que virou brisa. Num rio

Não é fácil explicar como alguém pode estar numa brisa. Primeiro é preciso enfrentar os mistérios de uma cidade, Belém. Um lugar sem História, pobre e sujo, habitado por gente violenta. Segundo a imprensa preconceituosa e ignorante do Rio de Janeiro e São Paulo. Pois, na verdade, a cidade tem 4 séculos de existência. E dois mil imóveis considerados como de interesse da cultura do Brasil. Além de abrigar anualmente a maior manifestação católica do planeta. Há 200 anos.
 
Seu Centro Histórico foi substancialmente enriquecido a partir de 1670, graças a religiosos estrangeiros. Cuja dedicação heroica à, então, temível doutrinação católica permitiu às ordens deles enriquecerem com a exploração da mão-de-obra indígena da Amazônia. Há menos de um século, belenenses ainda eram disciplinados através do medo de castigo divino. Se não fossem obedientes virariam pedra como a jovem que ameaçou sua mãe e ficou confinada na torre da Igreja de Santo Alexandre. Outros imóveis – belos palácio e igrejas – surgiram graças ao talento – e à ganância – de Antonio Giuseppe Landi, arquiteto de Bolonha que passou a metade de sua vida na Amazônia, nos anos de 1700.
Quanto mistério! Caso não bastasse esta sua inusitada mistura de erudição europeia com uma antiga, sábia, e equilibrada ecologia dos índios amazônidas – Belém também tem localização surpreendente, cercada por águas de uma baía e de um rio. Infiltradas, desde um tempo antiguíssimo, por debaixo de seu solo, quase a torná-la gigante veleiro. O vasto Alagado do Piri sobre o qual a cidade foi erguida virou na imaginação popular uma cobra grande. Se ela fizer um movimento brusco, desmonta Belém.
 
Foi nestas águas da baía e do rio que Euclides pescou. Solitariamente. Ficava ali, só, na sua canoa parada, pensando, em intimidade profunda com a paisagem. Enquanto, porções daquelas águas rumavam para o céu, em forma de vapor, gerado pela quentura do Sol ardente. Parecia querer ir junto, com o vapor, formar nuvens sobre Belém. Torná-las pesada para que desabassem, como chuva, por cima das casas, das ruas, das pessoas. E, depois de molhá-las, refrescá-las com brisa suave.
 
Euclides era jornalista e sempre escrevia textos leves, agradáveis, como a brisa, para seus amigos. Talvez devido àquela intimidade com as águas que evaporavam. Até quando, há poucos dias, hospitalizado, identificou, nos lençóis das camas, um logotipo criado por ele, anos antes, a pedido da casa de saúde. Estava feliz. Seu primeiro livro ia ser lançado.
 
Como, então, se defrontar com sua morte, estampada na página do seu jornal? A não ser como outra evidência do mistério que impregna a cidade? Por isto, ninguém se espante, caso sinta, de novo, a presença de Euclides. De volta, na leveza da brisa de Belém.
(Na ilustração, Um pescador fotografado por Euclides nas mesmas águas percorridas ele, postada na internet pela amiga do jornalista Dolores Coelho)
 

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