Um projeto de lei que tramitou na Câmara Legislativa do Distrito Federal em 1999 previa a inclusão no currículo das escolas públicas de Brasília do ensino de “literatura brasiliense”. Uma Comissão Especial de Seleção deveria ser formada com seis integrantes “escolhidos dentre pessoas com notório conhecimento em literatura brasiliense”, a serem indicados por seis órgãos ligados ao Estado.
A reação foi diversa na então incipiente cena literária local. Parte dos escritores apoiou a ideia, outra parte a contestou.
Dentre os que lideraram a reação que acabou por enterrar a proposta estava Nicolas Behr, hoje o principal escritor da cidade, que escreveu: “Pobre da literatura que precisa de um decreto para existir. Literatura Brasiliense é o Diário Oficial. A poesia é necessária, mas não obrigatória. Se obrigatória, deixa de ser poesia. Passa a ser burocracia”.
No entanto, a soma de órgãos oficiais para tentar obrigar uma estrutura estatal a adotar uma nomenclatura literária foi apenas mais um dentre tantos episódios que caracterizam a busca diária dos escritores de Brasília em fugir, em suas obras, da marca de cidade oficial restrita à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes.
Aos 59 anos e em Brasília desde 1974, o mato-grossense Behr é uma das principais atrações do Movida Literária, o primeiro evento literário de Brasília criado exclusivamente a partir dos escritores locais. Durante sete noites, 28 escritores, dos quais 26 locais, debaterão literatura em sete diferentes bares ligados à boemia da cidade. O evento começa no sábado, dia 20, no tradicional Bar Beirute, fundado em 1966. Depois, passa por badalados cafés, como Ernesto Cafés Especiais, Martinica e Objeto Encontrado; pelo Sebinho, o maior sebo de livros da cidade; e o bar Raízes, ligado ao movimento negro. Serão 14 mesas nas quais serão debatidos a obra dos autores da mesa, processo criativo e como fortalecer a cena literária local.
“Não existe uma literatura de Brasília e quando existir vai ser chata, chapa-branca. Vai ser mesmo o próprio Diário Oficial”, disse Behr ao Estado, em uma noite de domingo no Beirute. A todo instante em que é questionado se há e o que é a literatura de Brasília, Behr diz que tudo o que os escritores daqui mais querem é justamente escapar do estereótipo de cidade administrativa que Brasília carrega País afora. “A nossa luta é dissociar Brasília da ideia de poder. Brasília ainda é estigmatizante demais pelo poder. Você vai a Paris e não está na capital do poder. Aqui, o poder ainda está muito presente. Isso é limitante, rotulante. Sempre fugi desse rótulo”, afirmou Behr.
Seus livros de poesias costumam carregar referências a Brasília, mas sempre em uma tentativa de descontextualizar o ideário da capital federal. Por exemplo, Brasileia Desvairada (1979), Brasifra-me (2013), Poesília: Poesia Pau-Brasília (2002), Brasilíada (2010) e Porque Construí Braxilia (1993) e este último em direta referência a Porque Construí Brasília, escrito em 1975 por Juscelino Kubitschek para contar sua visão sobre a construção da cidade. Nele, escreve: “Imagine / Brasília / não-capital / não-poder / não-Brasília / assim / é / Braxília”.
O Movida Literária tem financiamento coletivo pelo Catarse, com quantias que variam entre R$ 25 e R$ 80, que oferece recompensas como livros, ilustrações e a participação em uma oficina literária a ser feita pelos organizadores.
“Movida é uma expressão que dá a ideia de movimento. Por isso, os lugares são em diferentes lugares a cada dia. Quisemos enfatizar essa ideia até porque Brasília não é um lugar que propicia o caminhar. As distâncias são longas e dificulta a ideia de flanar pela cidade, uma característica dos escritores”, contou o escritor Jéferson Assumção, um dos organizadores do evento. Gaúcho que mora em Brasília há 10 anos, tem mais de 20 livros publicados. Em 2015, foi diretor de livro, leitura, literatura e bibliotecas no Ministério da Cultura.
Segundo ele, a inspiração do movimento é a Balada Literária de São Paulo, cujo organizador é Marcelino Freire, que encerra o evento no dia 27 de maio. É o primeiro evento desse tamanho e nesse formato na capital do País, que é carente de eventos literários, livrarias e bibliotecas. Segundo o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, Brasília tem apenas 37 bibliotecas, à frente apenas do Acre (36) e de Roraima (16). Não há no Brasil registros de número de leitores de livros per capita. “Brasília não tem uma cena literária organizada. A bienal foi abandonada e a feira do livro aqui é feita dentro de shopping centers. Resolvemos então criar um movimento a partir dos escritores”, informou Assumção.
Nas mesas, estarão autores premiados que residem na cidade, como o mineiro José Resende Júnior, vencedor do prêmio Jabuti 2010 na categoria Contos e Crônicas com o livro Eu Perguntei pro Velho se Ele Queria Morrer (e Outras Estórias de Amor), e o gaúcho Lourenço Cazarré, vencedor do Jabuti de literatura infantojuvenil, em 1998, com Nadando Contra a Morte, 1998.
A pluralidade de origens dos autores reflete uma característica comum na literatura que agora começa a mostrar sua cara na cidade. Grande parte dos autores locais veio de outros Estados. Algo que reflete a composição da sua população. Segundo o Censo 2010, Brasília já tem a quarta maior população do País, atrás de São Paulo, Rio e Salvador. O Atlas do Censo Demográfico, também de 2010, mostrou que Brasília é a capital com maior atração de migrantes do país. “Brasília seguida de Goiânia, que podem ser consideradas metrópoles emergentes, destacam-se por apresentarem os maiores resultados alcançados no saldo migratório e na taxa líquida de migração”, diz o texto do órgão.
“Brasília é um conjunto de pessoas que vêm de outros lugares. A pergunta que se faz sempre aqui é você é de onde?. Por isso, não tem uma literatura com características próprias. É uma produção muito diversificada”, garantiu Regina Dalcastagne, professora titular de literatura brasileira e coordenadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília. Ela também relatou a necessidade da produção literária local para, segundo ela, fugir dos clichês sobre Brasília. “É uma cidade muito estigmatizada por quem não é daqui. Então, é importante que tenha outras perspectivas sobre a cidade e a perspectiva literária agrega e pode fazer com que se alimente um novo imaginário sobre a cidade. Só quem mora aqui pode fazer isso”, analisou.
Periferia
Embora minoritário, estarão presentes nas mesas autores dos bairros da periferia, as chamadas cidades-satélites, nas quais uma espécie de movimento literário marginal ganha força, principalmente com a realização de saraus literários como Casa Frida e Radicais Livres (São Sebastião), Sarau Complexo e Coletivo ArtSam (Samambaia), Tribo das Artes (Taguatinga) e Sarau-VA (Ceilândia).
A poeta Marina Mara, um dos expoentes desse movimento, participa de uma das mesas da Movida. Ela aponta que, diferentemente do que ocorre com escritores do Plano Piloto, a temática principal de quem escreve longe do Plano Piloto, a área central e nobre do País, é a segregação social. “A produção literária fora do Plano está cada vez mais rica, com saraus e produção de zines. O tema mais abordado é a desigualdade social, que é gritante entre o plano e as satélites. Produz-se muito sobre feminismo também.” Ela é autora do poemApp O Mapa da Poesia da Brasil, um aplicativo gratuito, um cadastro lançado já com mais de 10 mil pontos que mostram onde se localizam bibliotecas públicas, poetas, escritores, editoras e saraus de todo o País.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.