A exposição de Arthur Luiz Piza na Galeria Raquel Arnaud (Obras 1947/2015) – até 30 de janeiro de 2016 – apresenta obras de diversas décadas de trabalho do artista. Trata-se de uma exposição um pouco desigual, em que alguns trabalhos de alta qualidade compartilham o mesmo espaço com desenhos e pinturas medianos e, nuns poucos momentos, decididamente fracos. No entanto, acredito que essa seja uma das mais esclarecedoras mostras já feitas pelo artista.
Arthur Luiz Piza tem uma trajetória muito coerente, que pode sugerir a falsa impressão de que simplesmente concentrou-se no moroso e pouco arriscado desdobramento de questões que obcecam e encantam esse brasileiro que desenvolveu praticamente toda sua obra na França. A partir de fins da década de 1950, suas gravuras se afastam das influências do surrealismo, do vitalismo de Arp e Henry Moore e das “máquinas” bizarras de Picabia, que lhe proporcionaram alguns trabalhos magníficos, e se volta para a produção de obras mais geométricas, com forte acento construtivista.
A partir desse ponto, Piza levará a experimentação gráfica a suas últimas consequências, até que essas mesmas experimentações o conduzam à recusa da superfície do papel. O uso da goiva – um instrumento côncavo que permite abrir sulcos mais abaulados que o buril – tornará possível a obtenção de relevos de tinta na folha impressa e aos poucos esses mesmos relevos irão reivindicar do artista uma operação que irá prescindir das tintas, já que o próprio papel será cortado e vincado, dando origem a um novo tipo de tridimensionalidade, em que a gravura parece se reduzir a seus elementos básicos: corte e pressão.
Nem preciso dizer que estou traçando didaticamente uma linha reta que, para o artista, exigiu um raciocínio nada linear. Ao contrário, talvez nada seja menos evidente do que a capacidade de ouvir as demandas da própria produção.
Os desdobramentos são conhecidos: os (em geral) triângulos resultantes das dobras adquiriram autonomia. Passaram a ser fixados a novos materiais – de tapetes de piaçava a madeiras – até que conquistaram total soberania e se converteram em esculturas. Parece simples e lógico, não é? A meu ver, a importância da atual exposição – que ganha uma envergadura ainda maior pela possibilidade de se ver na Estação Pinacoteca as 361 obras que o artista doou para a instituição – reside nos novos caminhos de compreensão da produção de Piza que as obras expostas na Galeria Raquel Arnaud nos abrem.
A presença tão marcante das questões surrealistas nesses desenhos, pinturas e gravuras, de par com o vitalismo de Arp e Moore, com todos os seus nexos com as pulsões eróticas e sensuais, não significa, a meu ver, que a disciplina construtivista veio por limites em um inconsciente incontido e avesso a formalizações mais rigorosas. Da maneira como entendo a relação entre as duas etapas da produção de Piza, o interesse de seu cotejo está em voltar a olhar sua obra da maturidade tendo nos olhos ainda a lembrança dos trabalhos do artista principiante.
De um ponto de vista mais óbvio, é impressionante a quantidade de vaginas, ânus, seios e pênis que emergem de seus trabalhos, de maneira quase compulsiva, como sói acontecer com atrações dessa ordem. Um caderno de esboços eróticos publicado pelo Instituto Moreira Salles, Paraíso, põe às claras esse seu interesse. Mais sutilmente, sobressai a importância que as diferentes superfícies adquirem em suas produções. Delicadas aqui, ásperas acolá, macias, quentes ou frias nos outros muito lugares a que sua arte nos transporta. O escritor francês Paul Valéry escreveu certa vez “que o mais profundo é a pele”. Coube, entre outros artistas, a Arthur Luiz Piza fazer um mapeamento desse território pouco conhecido, a ponto de muitas vezes nos perdermos em vãs profundezas.
PIZA – OBRAS 1947/2015
Galeria Raquel Arnaud.
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