Amedeo Modigliani deixou a Itália em 1906, com 22 anos, e foi morar em Paris. Ali, nos anos que antecederam a 1.ª Guerra Mundial, ele pintou pouco. Mas desenhou muito, delineando com lápis, carvão, nanquim e aquarela o estilo que identifica seus personagens de pescoço longo e rosto quase abstrato. Guardados por cerca de 75 anos pela família de um médico amigo dele, mais de 400 daqueles desenhos foram exibidos pela primeira vez na Europa em 1993, revelando um Modigliani até então desconhecido. Parte dessa coleção agora surpreende os americanos em Modigliani Unmasked, em exibição no Jewish Museum de Nova York até 4 de fevereiro. Nos cerca de 130 desenhos, retoma-se o caminho de Modigliani para estilizar o corpo humano em sua pintura.
Eles também demonstram a consciência de Modigliani sobre seu lugar no mundo, segundo análise do crítico e historiador Mason Klein, que organizou a exposição. O “sem máscara” do título refere-se a uma questão étnica que Klein enfatiza no ensaio escrito para o catálogo e nos textos de introdução a cada grupo de obras, reunidas por temas nas salas do museu. Na teoria de Klein, a origem judaica e um entendimento modernista sobre diferenças são aspectos fortes e ainda pouco percebidos na forma de o pintor compor sua obra.
De origem sefardita, Modigliani chegou à França no mesmo ano em que Alfred Dreyfus, um judeu alsaciano e oficial do exército francês, foi finalmente inocentado e libertado depois de uma década preso sob acusação falsa de traição. Os franceses estavam divididos pelo escândalo conhecido como Caso Dreyfus e um antissemitismo xenofóbico infectava o país. A aparência latina e a fluência no francês mascaravam a origem étnica do italiano entre outros imigrantes judeus do seu grupo de artistas, como Marc Chagall, Chaim Soutine e Jules Pascin. O preconceito contra os outros o teria compelido a quebrar sua invisibilidade racial como protesto. Costumava apresentar-se em Paris afirmando: “Sou Modigliani, sou judeu”. Na visão de Mason Klein, a percepção da própria identidade aplica outra camada de contexto para reconsideração do que teria feito Modigliani pintar fisionomias sem nenhuma correlação racial.
Outras culturas
Em 1907, Modigliani foi morar num cortiço da Rue de Delta, em Montmartre, ocupado por artistas amigos do médico Paul Alexandre, dono do pequeno edifício. Os dois ficaram amigos muito próximos e, até o médico ir para o front no começo da guerra, em 1914, eles se encontravam quase todos os dias. Impressionado pelo entusiasmo de Modigliani em participar da criação de uma arte modernista, Alexandre tornou-se o primeiro colecionador das obras dele. Anos depois, ele contou: “Eu suplicava que ele não destruísse nenhum de seus cadernos, nenhum de seus estudos, colocando-lhe à disposição os poucos recursos que podia dispor”.
Em Modigliani Unmasked, os desenhos são acompanhados por obras criadas por outras culturas que ampliaram a visão do artista. Assim como Matisse ou Picasso, ele também foi fascinado pela arte primitiva e, a partir dela, puxou a linha inicial do seu estilo. Pela cronologia dos desenhos, nota-se que as figuras alongadas, caracteristicamente modiglianescas, surgem por volta de 1911. Antes disso, elas copiavam a natureza real dos retratados, como se pode comparar nas aquarelas com participantes de uma sessão espírita que ele viu na Itália, pintadas de memória entre 1905-06, e em esboços de artistas de teatro, circo e rua com quem ele passou a conviver em Paris.
A descoberta da estilização do rosto e do corpo nas esculturas e máscaras trazidas de colônias francesas e países da Ásia para o Museu Trocadero foi crucial para Modigliani rejeitar a noção de que a arte deve representar objetivamente o mundo natural. No primeiro museu etnográfico de Paris, entre peças cicládicas, indochinesas e do Oeste africano, ele aprofundou suas investigações sobre a abstração de feições e passou a tratar seus temas preferidos de maneira subjetiva. Cabeças que ele esculpiu em calcário, entre 1911 e 1913, exemplificam a influência da arte primitiva no desenvolvimento do seu estilo e compõem um dos pontos mais bonitos da exposição.
Pintando como escultor
Em grandes cavaletes estão desenhos e retratos com figuras de membros alongados e perfis semelhantes aos da coleção de arte egípcia do Louvre. Modigliani escolheu mostrar só aquela coleção do museu a Anna Akhmatova quando a conheceu em 1910. Moça longilínea, de 1,80 metro de altura, a poeta russa seria depois modelo numa série de desenhos de inspiração egípcia. Em 1911, Modigliani começou a explorar outro motivo emprestado da arte antiga, a cariátide grega. Enquanto na arte clássica essa figura é normalmente feminina, as desenhadas e esculpidas por Modigliani representam ambos os sexos e, muitas vezes, têm um gênero ambíguo.
Modigliani se via sobretudo como escultor e, mesmo quando a saúde o forçou a abandonar a modelagem e os talhes, continuou pensando, desenhando e pintando como escultor. Sente-se o mesmo gestual da sua mão nas 7 esculturas e 12 quadros que completam a exposição. Entre as pinturas está o retrato da polonesa Lunia Czechowska, óleo sobre tela de 1919 vindo do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Amiga do poeta Leopold Zborowski, marchand de Modigliani nos últimos anos de vida do pintor, Lunia foi retratada por ele 14 vezes.
No outono de 1918, Modigliani foi para Nice com a intenção de vender seus trabalhos a colecionadores ricos que passavam o inverno no sul da França. Jeanne Hébuterne, estudante de arte que o conheceu na Académie Colarossi, em Paris, foi junto e lá teve sua primeira filha com o pintor. Num ambiente mais tranquilo que o da capital, a pintura dele ficou mais contemplativa, as figuras ganharam cores mais brilhantes. De volta a Paris, Modigliani morreu de tuberculose em 24 de janeiro de 1920 e, no dia seguinte, Jeanne se matou saltando do quinto andar de um edifício. Estava no último período de gravidez do segundo bebê do casal.
Ao rejeitar a tradição artística ocidental do retrato como uma descrição “verdadeira” do eu, conforme diz Mason Klein, Modigliani a substituiu por uma noção de identidade como construção metafórica, fluida e sujeita a mudanças. Ao longo de sua curta carreira, o pintor gradualmente destilou e abstraiu o rosto em características elementares, “num processo que revela a mudança de conceito sobre identidade ligado ao seu senso de alteridade”, afirma Klein. “Para ele, não havia hierarquia racial; a identidade, como expressou em seus retratos, era infinitamente mutável.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.