Estadão

Feira do Livro Infantil de Bolonha discute banimento de obras em democracias

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A nota foi publicada em 13/03. Segue texto com alterações: </i>

Dois assuntos dominaram as conversas na Feira do Livro Infantil de Bolonha, realizada na semana passada na Itália: livros censurados e leitores sensíveis.

O primeiro surgiu porque tentativas de banir livros de uma escola ou de uma biblioteca, por exemplo, ocorrem nos mais diferentes países independentemente do estado de sua democracia. E o segundo, ainda como reflexo do anúncio da Puffin, selo infantil da Penguin Random House no Reino Unido, de que ela trocaria algumas palavras usadas pelo autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, entre outros clássicos da literatura para crianças, porque hoje elas são consideradas ofensivas. A editora explicou que tinha decidido fazer isso após contratar um leitor sensível – algo que não é exatamente novo no mercado editorial, mas que acabou sendo descoberto pelo grande público agora.

"O que é novo é que hoje as editoras estão se voltando para os clássicos; antes, elas contratavam leitores sensíveis apenas para os novos livros", explica Elena Pasoli, diretora da Feira de Bolonha.

A história de Roald Dahl gerou comoção, dividiu opiniões e a editora também se dividiu – agora ela diz que vai lançar os livros alterados e também uma coleção com os originais. O Brasil passou por uma discussão parecida quando a obra de Monteiro Lobato entrou em domínio público, em 2019. Houve quem defendesse que a linguagem fosse suavizada e quem insistisse que não se pode mudar a história, mas que se deve explicar o seu contexto.

No caso de Dahl, começou-se a falar, também, em censura – num entendimento de que esses leitores sensíveis são censores. Em uma conversa entre dois grandes ilustradores, Beatrice Alemagna e Axel Scheffler (O Grúfulo), em homenagem a Tomi Ungerer (1931-2019), surgiu a questão sobre se ele também não seria um próximo alvo dos leitores sensíveis. Os dois ilustradores lamentaram que isso estivesse ocorrendo no mercado editorial e alertaram para o risco de censura. Aria Ungerer, filha do ilustrador, pediu a palavra.

"Tomi nunca aceitaria a censura vindo de cima para baixo, imposta por um governo ou uma instituição, mas o que está acontecendo com essas leituras sensíveis é diferente. É algo que vem de baixo para cima, tem a ver com olhar se algo que está no livro é ofensivo para algum grupo de pessoas. Esse é o tempo em que vivemos. Acho que Tomi diria o mesmo", comentou Aria.

Beverly Horowitz, vice-presidente e publisher da Delacorte Press, editora americana também pertencente à Penguin Random House, separou as questões e colocou a leitura sensível como mais uma etapa do processo editorial. "Esses profissionais não fazem censura. Eles apontam, com base em sua expertise, algo que está ou não na página, e então discutimos a questão. Na maioria das vezes, isso ajuda muito, porque trabalhamos para fazer o melhor livro possível, para não precisar mexer depois que ele já estiver no mundo", ela disse.

<b>No Brasil</b>

"Há questões específicas, que nem sempre vamos alcançar, pois não é o nosso lugar. E a leitura sensível é um serviço que ajuda no processo de edição apenas. Sou contra uma censura, contra tudo de repente ser estéril e sem crítica ou humor, mas também sou contra perpetuar preconceitos apenas porque sempre foi assim. Se ofende alguém, é preciso parar e analisar aquele conteúdo, diálogo, imagem", explica Ana Lima, editora executiva da Rocco, em Bolonha. Ela conta ainda que a editora está aproveitando a reedição da obra de Thalita Rebouças para olhar, discutir e mexer no que for preciso.

Roald Dahl chegou recentemente ao catálogo da Galera Junior, também do Grupo Record, depois de anos na Martins Fontes. "Roald Dahl é Roald Dahl com seus defeitos e suas qualidades. Não gosto dessa coisa de reescrever para mascarar. Querer transformar em outra coisa é perigoso", comenta Alexandre Martins Fontes, também na feira. "Sou a favor do respeito, mas é impossível reescrever a história da humanidade", completa o editor que publicou uma das primeiras obras de não ficção juvenil LGBT+ no Brasil – Este Livro É Gay (2014) – e foi alvo de muitos ataques nas redes sociais. "Evoluímos muito, e talvez a consequência dessas conquistas seja o retrocesso perigoso e assustador que presenciamos quando alguém tenta banir um livro por seu conteúdo, seja no Brasil ou nos EUA."

<b>Censura</b>

A italiana Giorgia Grilli, professora de literatura infantil e pesquisadora da Universidade de Bolonha, comentou, em um debate, no qual ela apresentou histórias e imagens vetadas por editoras ou governos, que em uma democracia, em que ninguém pode evitar a publicação de um livro e obras banidas podem ser encontradas, o que a preocupa mais é a autocensura. "É assustadora a ideia de que livros que possam ser perturbadores para alguém não sejam criados. A arte deve ser sempre mais perturbadora do que reconfortante."

<b>Ataques são para amedrontar crianças e adultos, diz Levithan</b>

Autor de Garoto Encontra Garoto e de outras obras juvenis LGBT+, David Levithan, o 11º escritor mais censurado dos EUA, segundo o PEN America, veio a Bolonha para alertar sobre o estado atual da censura, sobretudo em seu país. "Esses livros estão sendo atacados como uma forma de amedrontar crianças e adultos. É um esforço da extrema direita de empurrar as crianças de volta para o armário, e eles não se importam se elas vão se matar ali dentro. Temos de lutar, e estamos lutando."

Ao seu lado estava Jon Anderson, presidente da divisão infantil da Simon & Schuster e integrante da Coalização Contra a Censura nos EUA. E ele disse que nunca viu nada igual ao que vem ocorrendo lá nos últimos anos, com grupos da sociedade civil e políticos mais organizados no banimento de títulos.

"Estamos nesse negócio, porque sabemos que livros importam para as crianças, que elas devem se ver neles e aprender sobre o mundo por meio deles. Nesse momento crítico, não podemos recuar", finalizou Levithan.

*A repórter viajou a convite da feira do livro infantil de Bolonha

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