Federico Fellini tinha 32 anos quando fez seu primeiro longa solo, em 1952. Dois anos antes, codirigira Mulheres e Luzes com Alberto Lattuada, mas Abismo de Um Sonho é o verdadeiro começo de tudo. Um casal, Leopoldo Trieste e Brunella Bovo. Viajam em lua de mel a Roma, para ver o papa, mas isso é o que ele pensa. Ela sonha conhecer o sheik branco de sua fotonovela favorita. Brunella some em Roma e, vagando na noite, o marido encontra Giulietta Masina como uma prostituta gentil, que lhe devolve a esperança e a fé. As Noites de Cabíria já estava em Abismo de Um Sonho, mas isso só deu para descobrir depois.
Completa-se nesta segunda-feira, 20, o centenário de nascimento de Federico Fellini. Nasceu em Rimini, cidade à beira do mar Adriático. Tornou-se um artista tão conhecido que seu nome deu origem a um adjetivo – felliniano – devidamente catalogado no Aurélio. Designa alguma coisa delirante, imaginativa. Estudou jornalismo em Florença e virou profissional em Roma, na revista de humor Marco Aurélio. Escreveu roteiros de fotonovelas – chamadas de fumetti -, fez rádio-teatro. Chegou ao cinema e escreveu roteiros um mestre neorrealista, Roberto Rossellini.
Embora com o pé na realidade, Fellini preferiu sonhar. Forjou uma biografia. Um ano depois de Abismo de Um Sonho, surgiu Os Boas Vidas, com Franco Interlenghi como um jovem que, como ele, foge à vida sufocante de província. O trânsfuga virou o jornalista Marcello de A Doce Vida e o cineasta Guido Anselmo de Oito e Meio, ambos interpretados por Marcello Mastroianni, o astro que foi alter ego de Fellini. Entre Os Boas Vidas e A Doce Vida, surgiram A Estrada da Vida e As Noites de Cabíria, o primeiro e o segundo Oscars de filme internacional, mais A Trapaça.
Foram quatro Oscars – três de melhor filme estrangeiro, La Strada, As Noites de Cabíria, Amarcord, mais um de carreira. Além de Mastroianni, teve uma parceria longa com o compositor Nino Rota. Foi casado 50 anos com Giulietta Masina, a quem ofereceu papéis inesquecíveis. Embora egresso do neorrealismo, quando começou a dirigir o movimento já esgotara seu ciclo histórico. Não havia como nem por que ficar preso àquele modelo. Fellini e Michelangelo Antonioni ingressaram na vertente chamada de realismo interior. Antonioni fez filmes sobre a alienação da burguesia, criou a trilogia da solidão e da incomunicabilidade. Fellini nunca teve aquele temperamento.
Menino, jurava que havia tentado fugir de Rimini seguindo um circo. O barroco e o circo sempre foram seu território, e por mais que exista angústia existencial em La Dolce Vita e Otto e Mezzo ela é embalada em imagens exuberantes, o tom é feérico. A estátua do Cristo sobrevoa Roma, a milionária e o jornalista fazem sexo na cama da prostituta, a estrela de Hollywood usa um vestido estilizado de padre e depois se banha na Fontana di Trevi. Fellini chegou a pensar em chamar A Doce Vida de Babilônia 2000. A derrocada da civilização – no desfecho, a garota tenta se comunicar com Marcello na praia, mas ele não a ouve.
A Marcello sucede Guido, o cineasta em crise. Sufoca em seu carro, viaja ao próprio passado e ao mundo da imaginação. Guido, a mulher e a amante. Guido, menino, na praia e a prostituta volumosa. A rumba, Saraghina. Os críticos tendem a considerar o psicanalítico Oito e Meio a obra-prima de Fellini, o público prefere Amarcord. O acordeonista cego, o pavão que abre sua cauda, as ridículas paradas fascistas, a Gradisca – um desejo de mulher, todos aqueles garotos masturbando-se por ela -, o transatlântico Rex que passa na noite. Amarcord, no dialeto de Rimini, quer dizer Eu me lembro. Fellini autobiográfico, Fellini mentiroso. O mar é de plástico e, no rito fúnebre de E La Nave Va, ele mostra que o próprio navio é de mentira. Nem por isso a grande mentira de Fellini deixa de ser um instrumento para ele falar de sentimentos verdadeiros.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>