Na manhã de sexta-feira, 8 de março, centenas de mulheres foram ao Muro das Lamentações, em Jerusalém. A data era especial. Elas celebravam o Rosh Chodesh, primeiro dia do mês no calendário hebraico, que coincidia com o Dia Internacional da Mulher e os 30 anos da fundação do grupo Mulheres do Muro, um movimento feminista religioso que luta pelo direito das mulheres de rezarem no local mais sagrado do judaísmo usando lenços e lendo a Torá em voz alta.
A confusão começou antes de qualquer oração. Adolescentes religiosas chegaram cedo, em ônibus fretados por rabinos, e ocuparam o pequeno cercadinho do Muro das Lamentações designado para isolar as mulheres. Do lado masculino, judeus ultraortodoxos, debruçados na mureta que divide os dois mundos, xingavam, cuspiam e ameaçavam as mulheres que ousavam rezar em voz alta. A polícia teve trabalho. Houve empurra-empurra e bate-boca, principalmente no lado masculino, entre ultraortodoxos e judeus moderados, incluindo líderes de grupos reformistas que foram apoiar as Mulheres do Muro.
“A polícia não atua. Ela sempre diz que nós provocamos e somos culpadas”, disse ao jornal O Estado de São Paulo Tammy Gottlieb, de 30 anos, que faz parte da direção das Mulheres do Muro. “Nós não queremos rezar no mesmo espaço que os homens. Queremos apenas que nós, as mulheres, tenhamos o direito de rezar em voz alta. A lei está do nosso lado, mas isso não impede que as agressões sejam constantes.”
Em 2013, a Justiça deu ganho de causa às Mulheres do Muro, afirmando que orações em voz alta não perturbam a ordem pública. Para Gottlieb, o conflito tem relação com o caráter religioso do Estado de Israel e o excessivo poder dado aos religiosos. “Em geral, as sociedades estão ficando cada vez mais liberais. Isso deixa em pânico os ultraortodoxos. Eles têm medo da mudança, de perder o poder. Por isso, eles estão cada vez mais intolerantes.”
A ativista Anat Hoffman, diretora e fundadora do grupo, também criticou os ultraortodoxos e sugeriu razões políticas para o tumulto. “A maioria dos ônibus veio de assentamentos na Cisjordânia. Eles chegaram lotados 15 minutos antes de nossa celebração começar. Eu fico me perguntando quem se beneficiaria com essa demonstração de força a um mês da eleição”, disse Hoffman, em referência à votação da semana passada, vencida pelo primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, com apoio dos conservadores religiosos.
No dia seguinte ao quiproquó no lugar sagrado, o Haaretz, jornal israelense de tendência progressista, acusou o governo do premiê de usar o Muro das Lamentações como ferramenta política. “Netanyahu deu a si mesmo o poder de decidir quem é mais e quem é menos judeu, se apropriando da religião e agindo como se fosse o Vaticano do judaísmo”, escreveu o jornal, em editorial. “Netanyahu age como o papa dos judeus.”
O Muro das Lamentações é parte sensível da vida judaica – é o único vestígio do Segundo Templo de Jerusalém, destruído pelos romanos, no ano 70 d.C. Além das orações, muitos fiéis depositam desejos escritos em bilhetes enfiados entre as pedras. Antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, o lugar era administrado pela Jordânia, que não permitia o acesso de judeus.
No terceiro dia da guerra, paraquedistas israelenses ocuparam a Cidade Velha de Jerusalém. “O Monte do Templo está em nossas mãos. Repito. O Monte do Templo está em nossas mãos”, anunciou Shlomo Goren, rabino-chefe do Exército. Yitzhak Rabin, então comandante das Forças Armadas, descreveu a chegada de seus soldados ao lugar como o episódio mais emocionante da Guerra dos Seis Dias.
Por um breve período, os judeus, homens e mulheres, puderam rezar juntos, sem restrições, no Muro das Lamentações. Mas logo o local passou a ser controlado pelos ultraortodoxos, que impuseram a separação. “Com o tempo, muitos líderes conservadores de Israel se esqueceram que democracia não é apenas o governo da maioria”, disse Hanna Herzog, socióloga da Universidade de Tel-Aviv. “É preciso haver equilíbrio e também respeito aos direitos das minorias.”
Boa parte dos israelenses se vê como ocidental. “A única democracia do Oriente Médio”, dizem. Israel tem universidades de ponta, alto investimento em pesquisa e tecnologia. Diferentemente dos vizinhos árabes, a base do sistema político é um dinâmico parlamentarismo multipartidário, com eleições livres e um Judiciário independente.
Em Israel, porém, não há separação clara entre Estado e religião, não há Constituição escrita ou casamento civil. O monopólio de temas religiosos é exercido pelos judeus ultraortodoxos. Por isso, muitos sociólogos, como Sammy Smooha, da Universidade de Haifa, classificam o regime como “híbrido semiocidental”.
Segundo Dahlia Scheindlin, analista do Instituto Israelense de Política Externa Regional, a hierarquia de gênero foi ampliada pelas duas instituições que regem o cotidiano de Israel, a religião e os militares, ambos dominados pelos homens. “Em uma sociedade obcecada pelo militarismo, o homem é rei”, disse. “Como os homens dominam o ambiente militar e religioso, eles se vangloriam do ar de autoridade, especialmente os mais velhos.”
Para entender: A força da tradição
Segundo a tradição ultraortodoxa, mulheres não devem realizar atos religiosos. Os dois partidos mais radicais, o Shas e o Judaísmo da Torá Unida, não têm candidatas – alguns defendem inclusive que elas não deveriam votar. As mulheres também são encorajadas a não dirigir. Nos últimos anos, porém, as ultraortodoxas vêm ocupando mais espaço no mercado de trabalho para que os homens se dediquem mais aos estudos religiosos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.