Na entrevista por telefone, de Atenas, Gianfranco Rosi contou a gênese de Fuocoammare, Fogo no Mar, que venceu o Festival de Berlim, em fevereiro, e inaugura nesta quinta, 7, o 21.º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em São Paulo. Mais três semanas e o filme estreia em 28 de abril, distribuído pela Imovision. “O Instituto Luce me convidou em 2014 para fazer um filme na ilha de Lampedusa. Um naufrágio produzira muitas mortes, mas o Luce não me encomendou nenhum filme em particular. Fui, e como sempre faço, me apropriei da paisagem, busquei as pessoas. Para fazer um filme, preciso me apaixonar. Se eu não me envolver com as pessoas que filmo, será muito difícil envolver o público.”
Rosi fala muito em “filme”. Detesta a divisão entre documentário e ficção. “Para mim, filmes são verdadeiros ou falsos, bons ou ruins.” Ele responde à pergunta que, desde Berlim, o repórter queria lhe fazer. Fogo no Mar retrata a tragédia dos imigrantes na ilha de Lampedusa pelos olhos de um garoto. Transforma a tragédia em lirismo. Alguma influência de Louisiana Story, de Robert Flaherty? Em 1948, Flaherty, que já era um grande diretor, aclamado por seus documentários – Nanuk, o Esquimó e O Homem de Aran -, quis fazer um filme para discutir a questão do petróleo no mundo. As chamadas irmãs, as grandes companhias que operavam no setor, não lhe permitiram levar adiante o projeto. Ele resolveu o impasse fazendo seu filme pelos olhos de um menino. A denúncia virou lirismo.
Ao anunciar sua escolha de Fogo no Mar para abrir o festival em São Paulo, Amir Labaki disse que Rosi trata com incrível delicadeza e notável talento narrativo a crise humanitária dos refugiados na Europa. De acordo, mas e Flaherty? Agora é Rosi quem fala – “Flaherty foi um grande diretor e permanece uma referência para quem faz e gosta de cinema, mas ele filmou Louisiana Story com roteiro. Eu, não.” Seu método foi o mesmo empregado em Sacro Gra, sobre o círculo viário ao redor de Roma. “Fui à ilha, conheci as pessoas. O primeiro foi o doutor Bartolo, que me introduziu na tragédia dos imigrantes. O bambino veio depois.”
Lampedusa fica no meio do oceano, a meio caminho entre a costa da África e a Sicília. Ali, têm aportado muitos barcos abarrotados de imigrantes, que buscam a Europa como o paraíso. As condições são inumanas. Barcos naufragam. Para muita gente, a viagem termina em morte. Rosi filma o dr. Bartolo, dá voz aos imigrantes. Filma o menino. Ele brinca de guerra, vai ao oculista, porque precisa de óculos. Uma metáfora para a cegueira dos que não querem ver a tragédia dos imigrantes? “Foi assim que você viu? Pode ser, mas nada foi premeditado. Filmo o cotidiano. O menino brinca, precisou ir ao médico. Segui-o com minha câmera. Em nenhum momento lhe disse – faça isso, ou aquilo.”
O cinema de Rosi tem essa mobilidade porque ele é sua equipe. “Faço a câmera, a luz, o som. Em geral, tenho apenas um assistente comigo.” Curiosa, a trajetória pessoal do diretor. Sua infância e parte da adolescência foram vividas na África e na Turquia. A descoberta do cinema foi tardia. “Vi meu primeiro filme aos 18 anos, quando estava convencido de que seria médico.” A medicina foi abandonada, ou melhor, substituída. “De uma maneira ou outra, continuo me interessando por gente. As pessoas são meu material.” Ele filmou 70 horas para Fogo no Mar. “Para Sacro Gra, foi mais ou menos a mesma coisa. A diferença é que lá tem muito mais gente e eu também dispunha de muito mais tempo.”
Em Berlim, alguns críticos contestaram a decisão do júri presidido por Meryl Streep de atribuir o Leão de Ouro a Fogo no Mar. Dissertam que ela fez o que esperava o diretor da Berlinale, Dieter Kosslick. O festival deste ano mostrou muitos filmes sobre imigrantes e houve uma mobilização para levantar fundos de apoio em todas as sessões. Nada disso invalida a ousadia e grandeza do júri, que premiou uma obra excepcional. Em Berlim, Rosi já havia destacado a generosidade do povo da ilha de Lampedusa. “Como pescadores, eles estão acostumados a receber o que o mar lhes oferece. Recebem os imigrantes. É uma tragédia contemporânea, o novo genocídio, o novo Holocausto, e a maioria finge que não vê. Espero que o filme sirva para debater essa questão, que é visceral. Todas essas mortes, esse sofrimento, somos todos responsáveis. Não adianta fechar os olhos.” Seu plano imediato é fazer mais um filme – para vencer Cannes, o repórter provoca? – e parar. Como assim, parar? “Quero lecionar, meu sonho é dar um curso de cinema para jovens, ver nascer os filmes deles.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.