Aposto. Aposto duas vezes, até. O livro <i>Sou uma Tola por te Querer</i> é a melhor obra de contos publicada no ano passado que você certamente não leu. E diante de tamanha – suposta – omissão, cabe o conselho: simplesmente leia o livro e tire suas próprias conclusões. Garanto, melhor, aposto, que você não vai se arrepender.
Lançado pela editora Tusquets no finalzinho de 2022, quando nos ocupamos todos de saber se haveria transição entre Lula e Bolsonaro, e nem imaginaríamos o que ocorreria em 8 de janeiro, o livro apresenta nove contos escritos pela argentina Camila Sosa Villada, uma mulher transexual que já havia conquistado corações, mentes e corpos com <i>O Parque das Irmãs Magníficas</i>.
Se neste, Villada mistura o tempo todo realidade e ficção – "É minha ficção, minha diversão com as palavras", disse em entrevista recente ao <b>Estadão</b> -, nesta seleção de contos se fica com a impressão de que tudo é ficção. Mas enganchada, emaranhada, na mais cruel realidade.
Há uma diversidade estonteante de personagens marcantes. Das crianças que convivem com um pai violento em Não Fique Demais no Atoleiro, da avó e neta se preparando para o pior em A Merenda, passando pelo divertido cotidiano da mulher que decide se tornar acompanhante de homens gays que não desejam sair do armário (Mulher Tela).
<b>UTOPIA</b>
Mas há dois pontos altos, altíssimos, no livro. O conto Seis Tetas, em que Villada desenha um cenário utópico, mas não distante da realidade de muitos, em que travestis são perseguidos por drones, assassinados de maneira violenta – eles e as pessoas que os tocaram três vezes ou mais – até que se refugiam em algum lugar distante e protegido por certa magia, por uma certa mágica (bruxa?).
E sem dúvida, a obra valeria a pena se Villada tivesse lançado somente o conto Sou uma Tola por te Querer. Não reclamaríamos, como não reclamos (amamos, na verdade) dos curtos e magníficos Formas de Voltar para Casa e Bonsai e a Vida Privada das Árvores, ambos de Alejandro Zambra.
Villada avisa que Sou uma Tola por te Querer deve ser lido em um quarto ao som de Lady in Satin, de Billie Holiday. Em um mundo povoado pela promessa de experiências em tudo – dos novos produtos oferecidos nos supermercados ao Metaverso insuportável -, eis uma verdadeira imersão à disposição nas livrarias feitas de concreto, aço e sonhos. A música envolve a história de duas amigas travestis que conhecem e se tornam amigas de Billie – e conta como as três perambulam por muquifos. A conexão entre música e escrita arrepia. Termina-se o conto e não se quer seguir adiante no livro (na vida?), deseja-se preservar a beleza, a tristeza e a violência do que nos acaba de ser narrado. E neste ponto, lembra-se, pelo menos no meu caso, de um compatriota de Camila. Gustavo Cerati canta: "Te conheço de outra vida / hoje você vai sair pela janela / Te levo/para que me leve".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>