Duas reações distintas, do regente, músicos e plateia, marcaram com nitidez o melhor e o convencional do ótimo concerto da noite desta segunda-feira, 26, da Filarmônica de Hamburgo na Sala São Paulo, dentro da temporada da Sociedade de Cultura Artística. Os quase 30 segundos de concentrado silêncio “soaram” naturais ao final de Don Quixote, de Richard Strauss, com Kent Nagano congelado no último gesto, assim como o violoncelista Gautier Capuçon, os músicos e a plateia inteira – todos comungando o mesmo sentimento de emoção ao ver ali revivida a cena da morte de Don Quixote, herói lendário de nossos sonhos. E agradecidos pelo privilégio de terem participado de um momento mágico, daqueles que só a música proporciona.
Afinal, todos tínhamos mergulhado nas peripécias do maior cavaleiro de todos os tempos, Don Quixote, às voltas com os moinhos de vento que historicamente assolam a humanidade, e seu fiel escudeiro Sancho Pança em suas andanças heroico-humorísticas. Isso aconteceu porque Capuçon é, aos 35 anos, violoncelista completo, capaz de imprimir uma “voz” potente e personalíssima a seu cello Goffriller de 1701; porque Nagano é, de fato, um dos mais plásticos, eficientes e talentosos maestros da atualidade e vive seu melhor momento, aos 64 anos, combinando alquimicamente a maturidade com energia e vibração; e devido à performance irretocável dos músicos de Hamburgo, com seus instrumentos de sonoridade acobreada tão característica das mais antigas orquestras europeias.
Derradeiro detalhe: todos estavam, simplesmente, a serviço da música extraordinária de Richard Strauss. Norman del Mar, em seu estudo clássico sobre o compositor, diz que Don Quixote e Till Eulenspiegel são a quintessência de sua genial habilidade no trato com a orquestra. E que o primeiro só não é mais tocado nas salas de concerto porque exige máquina de vento, tuba tenor e duas trompas extras.
Teria sido melhor colocar em português os títulos das variações no programa. Afinal, Don Quixote conta não uma, mas muitas estórias do fidalgo espanhol do genial Cervantes e remete a capítulos específicos do livro; conhecer o enredo ajuda a degustar melhor a música.
Nas primeiras execuções (a peça é de 1897), os instrumentos solistas, incluindo o cello que encarna Don Quixote, eram tocados pelos primeiros de cada naipe. No final da vida, Strauss já o colocava em destaque, como se fosse um concerto. Na verdade, estas variações são uma celebração da orquestra como maior instrumento já inventado pelo homem.
O momento convencional – e mesmo assim muito bom – aconteceu na Sinfonia número 1 de Brahms. Execução correta, sem dúvida. Mas Nagano e seus músicos não conseguiram – aliás, nem tentaram – repetir o maravilhoso silêncio da primeira parte.