Plateia predominantemente jovem, pipoca e refrigerante. Havia gente pelo ladrão nas pré-estreias noturnas pagas de A Freira, na quarta-feira à noite, no Playarte Marabá. Para chegar ao longa de Corin Hardy, o público teve de passar por uma longa série de trailers, incluindo o Overlord de J.J. Abrams, sobre a maldade sem fim do nazismo, e A Maldição da Freira (sim!). Embora o vínculo só fique claro no fim, A Freira integra-se à série de thrillers sobrenaturais Invocação do Mal, com Vera Farmiga e Patrick Wilson como o casal de investigadores que vive de confrontar forças sinistras. Nos EUA, as pré-vendas de A Freira superaram os quatro filmes da franquia juntos.
A história, supostamente real, passa-se na Romênia após a 2ª Grande Guerra, nos anos 1950. Uma espécie de prólogo coloca o público dentro de um convento habitado por… Quem, o quê? Seja o que for, é poderoso. Uma freira mata-se e o Vaticano envia um eminente pesquisador para o local, acompanhado por uma noviça. Eles descobrem a sinistra presença da “freira”, que surgiu de uma fenda do mundo inferior e agora assombra o castelo erigido em convento. À dupla une-se um local, o galante Frenchie/Jonas Bloquet, que vive o conflito entre o desejo que lhe inspira a noviça, irmã Irene/Taissa Farmiga, e o seu respeito supersticioso pelo hábito que, lá pelas tantas, ela passa a usar. O experiente padre (bispo?) Burke vive o drama de uma falha em seu currículo – o caso de exorcismo, que não deu certo, num garoto. Ele tem visões do menino possuído pelo Demônio e o garoto o atormenta com seus gritos – “Salve-me!”, “Por que não me salvou?”.
Como outros filmes de terror, A Freira parte de uma premissa até certo ponto simples. No passado, o castelo era habitado por um aristocrata perverso que conseguiu abrir o portal do inferno, pelo qual veio essa figura monstruosa. O local foi lacrado e purificado, e transformado em convento, no qual religiosas rezam dia e noite, sem parar, para manter o mal afastado. A guerra, o nazismo, fragiliza o espaço sagrado com suas bombas e reabre o portal. A partir daí, nada nem ninguém está a salvo. James Wan, o Midas do terror, atua somente como produtor. Vera Farmiga e Patrick Wilson têm participações brevíssimas no epílogo – 20 anos depois. O inesperado é que o filme de terror é também uma história de amor – sobre como a força dos sentimentos é impotente diante do caos que rege o mundo atual.
Vale advertir para o risco de spoiler no texto que prossegue agora. O inglês Corin Hardy, de 43 anos, deve sua fama a um terror de 2015, A Maldição da Floresta. Outro pesquisador – sempre eles – isola-se com a mulher e o filho bebê numa cabana na floresta. Ele pesquisa o impacto ambiental de um projeto que prevê a destruição parcial da floresta. O local é habitado por seres mágicos, fantásticos – mas que podem se tornar ameaçadores em defesa de seu hábitat. É o que ocorre. Hardy é atraído por mitologias – no plural. Os seres da floresta, o mal aprisionado no convento. E Hardy é cinéfilo. Com toda certeza assistiu a Madre Joana dos Anjos, do polonês Jerzy Kawalerowicz, de 1961, e também a Os Demônios, de Ken Russell, de 1972, que revisita o mesmo episódio – as freiras com possessão do convento de Loudun.
Com seu colorido monocromático, que parece preto e branco, A Freira reproduz planos célebres de Kawalerowicz – as freiras, vistas numa tomada de cima (plongê), prostradas em adoração no interior da igreja. O hábito branco de madre Joana, e o da irmã Irene. O padre Burke tem cara de invocado, e não por acaso o ator mexicano Demián Bichir, é conhecido por suas participações em filmes violentos como Selvagens, de Oliver Stone, Alien Covenant, de Ridley Scott, e Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino. Mesmo que o tema do sexo não tenha a mesma dimensão dos filmes famosos de Kawalerowicz e Russell, o desejo está em pauta. Frenchie deseja Irene e ela se blinda fazendo seus votos. O branco representa a pureza dos seus sentimentos contra o mal. Ela vence, parcialmente – aguarde pelo desfecho, pelos tais 20 anos depois.
Corin Hardy tem ideias visuais interessantes – o Cristo na cruz, com a cabeça decepada (ou envolta pelas sombras), na igreja profanada. A cruz invertida, que todo cinéfilo associa à igreja em ruínas de Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda, de 1958. Sua visão é trágica e pessimista. A juventude sacrificada, o sentimento – o amor – impotente diante da invocação do mal. A Freira marca o começo de tudo. Como filme, entrega o que promete. É terror dos bons.