O catalão Albert Serra é um artista de vanguarda. Criou a própria produtora, Andergau, para fazer, como quer, os filmes que deseja. A par da sua investigação sobre a linguagem, Serra questiona os mitos – o Quixote (Honor de Cavalleria), os Reis Magos (El Cant des Ocels), a Bíblia (Os Nomes de Cristo), a Morte (História de Minha Morte), o Rei Sol (A Morte de Luís XIV). Serra apresentou em Cannes, no ano passado, na mostra Un Certain Regard, seu novo filme. Liberté ganhou o prêmio do júri na seção.
Em tempos de pandemia, a distribuidora Zeta Filmes está tomando uma decisão radical. Não vai esperar pela reabertura das salas, até porque não é preciso nenhuma bola de cristal para antecipar o congestionamento do mercado. Liberté chega nesta terça, 7, ao streaming (informações em instagram.com/zetafilmes). É importante. Mesmo para quem está acostumado às ousadias do autor, esse filme poderá parecer surpreendente.
A liberdade do título é principalmente sexual, e remete aos libertinos. Historicamente, atribui-se a Calvino a criação do termo, que ele usava para designar seus opositores políticos. Num sentido mais estrito, libertinos eram os pensadores e literatos europeus que defendiam uma nova atitude sexual, livre das amarras da moralidade. Eram hedonistas extremos, voltados à busca do prazer.
Da Espanha, em pleno isolamento social provocado pela pandemia da covid-19, Serra conversou pelo telefone com o jornal <b>O Estado de S. Paulo</b>. Paulo.
A pergunta básica – como surgiu esse filme com um mínimo de palavras, exceto no começo, e que se passa à noite, numa floresta, mostrando apenas pessoas que fazem sexo? "Surgiu como uma peça que montei experimentalmente na Alemanha, e deu origem ao convite do Museo Reina Sofia, em Madri, para que fizesse uma instalação. Com a instalação, vieram as imagens, dois telões nas extremidades da sala, com quatro caixas de som vindo de todos os lados, e que provocavam uma espécie de desorientação do público", conta. "A ideia foi criar um poema da noite, projetando as pessoas como voyeurs dentro do que não deixava de ser uma orgia. Foi um experimento muito interessante, e já que estava trabalhando com imagens e sons, o filme surgiu naturalmente, como consequência."
Seu cinema é sempre essa mistura de artifício e naturalismo, em que o som – as armaduras de Honor de Cavalleria – pode ser tão importante quanto as imagens. Mas em Liberté tem algo mais. O cinema pornográfico, salvo exceções, busca sempre mulheres belas e homens dotados, de membros rijos. No filme, as pessoas são comuns. Corpos e membros flácidos, jovens e velhos. Há uma espécie de democratismo sexual, o prazer é de, e para todos.
"Enquanto fazíamos a peça, e depois a instalação, o filme, houve, em escala mundial, uma ascensão do conservadorismo, inclusive sexual. Grupos religiosos radicais passaram a encarar a revolução sexual dos anos 1960 como origem de todos os problemas. Voltamos a Sade e sua utopia sexual. O prazer tem de ser para todos. Quanto aos corpos, se adotássemos modelos de beleza e potência estaríamos navegando na onda do pornô, o que não é absolutamente o caso", explica.
O filme narra uma longa noite de sexo na floresta. Hétero, homo, sadomasoquismo. Tirando o sexo no limite do explícito, é impossível não pensar no clássico de Michelangelo Antonioni, A Noite, episódio intermediário da trilogia da solidão e da incomunicabilidade. Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni atravessam aquela noite e, com a aurora, extenuados pelo vazio existencial, ela lê uma carta amorosa que ele lhe enviou, anos atrás. Onde foram parar os sentimentos? "Sem dúvida que Antonioni foi uma referência, mas não no sentido usual. Lá, no começo dos (anos) 1960, ele filmava uma classe, a burguesia. Aqui há uma interação entre aristocratas e camponeses. O sexo abole as classes, o servo aplica chibatadas no seu senhor, mas a questão permanece. Pela manhã, o desejo é aplacado, mas não satisfeito. Faz parte da natureza humana querer mais. Como em Antonioni, a luz não chega como uma libertação."
Quase não há trama em Liberté – uma vaga história de resgatar noviças que estão no convento contra a vontade e trazê-las para a orgia na floresta. O que o espectador vê funciona como um espelho. Fisicalidade pura. Na tela, homens e mulheres, detrás de árvores, arbustos, excitam-se olhando pessoas que fazem sexo. Eles olham, e o espectador também. O voyeurismo.
"E essa é uma diferença entre o filme e a peça. No teatro havia mais texto. O filme tem mais fricção. E por mais estranhamento que eu consiga criar na montagem, o espectador fica mais próximo das emoções dos atores." Justamente, os atores. A maioria era de não profissionais – nenhum ator pornô – e ficavam à disposição do diretor a noite toda, naquela área de cruising que era o set. Não havia um roteiro preciso. Serra decidia na hora o que ia filmar, e com quem.
O mais conhecido deles está quase irreconhecível. Você precisa prestar muita atenção no duque de Walchen para identificar o ator cultuado por nomes como Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Joseph Losey – Helmut Berger. "Ele é muito corajoso. Discutimos antes o papel, a intenção. No set, fazia o que era preciso, sem inibições. Dizia que o corpo é sua ferramenta de trabalho."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>