Os dois filmes italiano em concurso – Il Giovane Favoloso e Hungry Hearts – confirmam a qualidade da representação doméstica prometida pelo diretor do festival, Alberto Barbera. Junto com Alme Nere (Almas Negras), já apresentado, formam uma trinca forte, de boa qualidade. Insuficiente para bisar o Leão de Ouro conquistado ano passado (com o documentário Sacro GRA), mas suficiente para fazer bom papel jogando em casa. Ambos foram bem aplaudidos pelo público. Nenhuma ovação, diga-se, mas reconhecimento por um bom trabalho realizado.
Em Il Giovane Favoloso (O Jovem Fabuloso), Mario Martone debruça-se sobre a vida do poeta Giacomo Leopardi (1798-1837), da sua juventude em Recanati à morte em Nápoles. Filho prodígio de um nobre, Leopardi era destinado à vida eclesiástica, mas preferiu as letras. Sofrido, angustiado em tempo integral, de sexualidade indefinida e corpo frágil, Leopardi foi se arrastando pela vida enquanto escrevia versos sublimes. É pena que a biografia de Martone se debruce mais sobre os incidentes e menos sobre a literatura. Em boa ambientação de época, tenta alguns recursos modernos (como a inclusão de rock na trilha sonora), mas recua da ousadia e estaciona na zona de conforto do filme histórico comportado. Acompanha-se com interesse. O poeta é vivido pelo ator Elio Germano, em interpretação talvez não notável.
Bem mais atrevido é Hungry Hearts, de Saverio Costanzo. Se você estranha o título em inglês para esses corações famintos, convém explicar que a história é ambientada nos Estados Unidos. A italiana Mina (Alba Rohrwacher) é empregada do consulado italiano em Nova York e conhece por casualidade Jude (Adam Driver, da série Girls e do cult Frances Ha) quando ambos ficam presos no banheiro de um restaurante chinês. O início cômico é prólogo do intenso drama que virá a seguir.
Costanzo, baseado no romance Il Bambino Indaco, de Marco Franzoso, conta a história incrível da mãe que coloca em risco a vida do seu bebê ao tentar protegê-lo de tudo. O tom é de um thriller, frisado pela música muito boa de Nicola Piovani, que já fez filmes com Federico Fellini e os Irmãos Taviani, para resumir. Jude tenta intervir em favor da saúde do filho, mas seu amor por Mina o impede de tomar atitudes mais drásticas. Em resumo, a mãe entende que seu bebê é um predestinado e portanto deve ter alimentação especial, que não conspurque sua alma pura. Proteína animal, nem pensar.
Desse modo Hungry Hearst progressivamente vai tomando a forma de uma espécie de Bebê de Rosemary de sinais trocados, porque o bebê é abençoado e a ameaça vem da própria mãe. O trabalho de câmera é bastante ousado, com longos planos-sequência e deformações de imagens, mimetizando, talvez, o funcionamento mental da superproterora Mina, esplendidamente interpretada por Alba. Não será surpresa se ganhar o prêmio de melhor atriz.
Mais italianos
Em mostras paralelas, ou exibições fora de concurso, no quadro do festival vai se desenhando um interessante painel da Itália contemporânea. A imprensa internacional pouco presta atenção a estes filmes, mas às vezes são o que existe de mais interessante em Veneza.
Por exemplo, o mais longo aplauso (dez minutos de ovação) não veio para nenhum
título em competição, mas para o sarcástico (e melancólico), Belluscone, una Storia Siciliana, de Franco Maresco. Trata-se de um documentário satírico sobre as relações (muito verdadeiras, sustenta o filme) entre a máfia e o megaempresário e ex-primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi. O clientelismo, a corrupção consentida, a antiética cafajeste da TV comercial do Cavaliere (como chamam Berlusconi), os cantores bregas, as loiras carnudas – tudo isso entra na tela numa espécie de alucinante liquidificador audivisual. Um personagem aparece constantemente para depor – um tal Ciccio Mira, agente de cantores sicilianos, homem de mil afazeres e devoto da máfia dos velhos tempos, “quando não se matavam mulheres nem crianças”. O filme parece um programa do Chacrinha ainda mais lisérgico e caótico, divertindo o público a cada passagem. Trata-se de um riso catártico, claro, seguido de aplausos de quem reconhece no longa uma feroz radiografia da alma meridional. Pelo menos de um dos seus aspectos.
Outros dois documentários bastante reveladores, embora não tão ousados do ponto de vista formal quanto Belluscone, são Giulio Andreotti – Il Cinema visto da Vicino, de Tatti Sanguinetti, e Gian Luigi Rondi: Vita, Cinema, Passione, de Giorgio Treves. Dois docs relacionados ao cinema, sendo que o primeiro envolve um político que dominou a cena durante decênios e outro um crítico de cinema de grande influência na península. Acompanhando-se a trajetória de Rondi que, apesar da idade avançada, acompanhou a sessão, pode-se rever toda a história do cinema italiano recente: do neorrealismo do após-guerra à comédia alla italiana, dos autores mais modernos à criação do Davide di Donatello, o “Oscar” do país. Rondi é, até hoje, presidente da Academia Italiana de Cinema.
Já a trajetória de Andreotti é mais complexa e controvertida. O político, retratado no genial Il Divo, de Paulo Sorrentino (incrivelmente inédito no Brasil), nome forte da Democracia Cristã, governou a Itália em diversas oportunidades. Foi acusado de envolvimento com a máfia e, em 2001, viu-se condenado a 23 anos de prisão por cumplicidade no assassinato do jornalista Mino Pecorelli. Não cumpriu pena pois, como senador vitalício, gozava de imunidade. Morreu em 2013, aos 94 anos.
Pouco antes, havia concedido longa entrevista a Sanguinetti sobre um segmento específico da sua trajetória. Logo após a guerra, foi nomeado sub-secretário para a pasta de cultura, com foco principal no cinema. Entre suas atribuições estava a administração da censura e é sobre ela que se concentram as perguntas de Sanguinetti. As respostas podem ser consideradas uma súmula da astúcia e mesmo do cinismo da Realpolitik. Bem entendidas, fornecem preciosas pistas sobre o modo de funcionamento da política italiana, suas relações com a Igreja e com os artistas. Por outro lado, Andreotti foi defensor do cinema italiano e responsável por leis que limitavam a concorrência desleal do produto estrangeiro, em especial do cinema americano que, depois da guerra, entrou com força total em território europeu.
Decepção
Se os filmes italianos foram bem, um dos mais esperados, The Cut, do alemão de origem turca Fatih Akin, decepcionou. Para falar do genocídio da população armênia nas primeiras décadas do século 20, Akin imagina a história de um artesão (o francês Tahar Rahim, de Um Profeta, de Jacques Audiard) convocado para o exército turco e que tem a família dispersada ao longo da guerra. Embarcará numa odisseia para se reencontrar com as duas filhas sobreviventes, que o leva a Cuba e aos Estados Unidos. Tudo bem, só que não precisava dar à saga linguagem de um novelão televisivo, cheio de passagens improváveis e música melosa. O inverossímil já começa com a comunidade armênia se expressando…em inglês, com o devido sotaque. Desse jeito não dá para entrar na história.