O presidente da Ponte Preta, Sebastião Arcanjo, sabe que é uma raridade em meio aos dirigentes brasileiros. Tiãozinho, como é conhecido, é o único presidente negro entre os clubes da Série A e B nacional e espera aproveitar o momento, em que manifestações antirracistas ganham mais força a cada dia, para fazer com que o assunto ganhe a importância que merece e as pessoas passem a discutir mais o tema e a enfrentá-lo. O dirigente avaliou, inclusive, que houve uma "abolição da escravidão incompleta" no Brasil.
Em entrevista ao <b>Estadão</b>, Tiãozinho mostrou personalidade e levantou assuntos que muitas vezes são deixados de lado ou tratados com indiferença por boa parte dos brasileiros. O dirigente assumiu o cargo no começo do ano e decidiu apostar na pluralidade de etnias e gênero na diretoria da Ponte. Sua briga não é só contra o racismo. No total, são cinco negros, dois profissionais de ascendência japonesa e uma mulher em sua diretoria, algo bastante raro no futebol brasileiro.
O presidente diz, entre outras coisas, que o racismo é algo normal no Brasil e que muitas pessoas têm dificuldade para reconhecer que são racistas. Ele lamenta que o País tenha escondido o assunto por tanto tempo. O presidente fala ainda do time, ameaçado de cair no Paulistão.
<b>Você já disse que pretendia democratizar a diretoria da Ponte e dar espaço para diversas etnias e maior espaço às mulheres. Como está essa mudança?</b>
Adotamos o critério da pluralidade étnica e racial e contemplando a questão de gênero. O desafio é que ainda a maior parte da diretoria é composta por homens e pretendo aumentar a representação feminina na nossa diretoria. Estávamos aguardando algumas mudanças no estatuto, mas o coronavírus fez parar tudo. Neste momento, temos cinco negros, contando comigo, além de uma mulher e dois japoneses.
<b>O que pensa sobre os movimentos antirracistas pelo mundo?</b>
Aquela cena da morte do George Floyd criou mobilizações que serviram para colocar o racismo em pauta, no centro do debate do mundo. Isso dá para tirar de positivo nisso tudo. Outra coisa é que esses movimentos trouxeram artistas e intelectuais para a discussão e é muito bonito ver a juventude participando. Inclusive, pessoas que não são negras liderando movimentos e servindo como escudo humano de quem seria o objeto da violência mais convencional da segurança pública: o negro. Outro efeito é que isso tudo pode criar um processo de formação da polícia para criar cultura que desfaça a ideia de que a população negra é criminosa em potencial.
<b>Sente que isso também pode acontecer no Brasil?</b>
Provocado por esse tsunami internacional, o Brasil vai precisar se posicionar. Essa adesão à causa e aos movimentos é por conta de nos sentirmos envergonhados com a forma que lidados com o racismo. Temos um jeito cordial de tratar o racismo para quem não é negro, mas para quem é negro, o racismo nunca foi cordial. Chegou a hora de dar um passo a frente, sair da indignação e partir para ações mais concretas. Não só no futebol, mas aprofundar a adversidade nas empresas, peças publicitárias e em todos os setores. Sabe aquela coisa do Carrossel Holandês (seleção da Holanda na Copa de 74), de que todo mundo marcava e atacava? Então, precisamos fazer isso. Explorar todas as áreas e ter um olhar mais periférico para o racismo.
<b>Você é o único presidente negro entre os times da Série A e B e existem pouquíssimos dirigentes negros no futebol. Você vê isso como racismo?</b>
Creio que exista um outro ponto, que acaba caindo no racismo. Geralmente, os jogadores, principalmente os negros, são levados precocemente a fazer uma escolha: estudar ou jogar futebol. O cara recebe o primeiro salário e vai quase todo para ajudar a família e assim vai por muito tempo. É comum aqueles que vêm de camadas mais pobres, quando conseguem um rendimento maior, carregam a família nas contas. Isso não é só no futebol, em outras áreas acontece também. Você acaba pressionado e comprometido com esse apoio de ajudar a família e não consegue ter a opção de estudar, porque precisa trabalhar para colocar comida em casa. Não dá para conciliar o futebol com os estudos, em razão de viagens, treinos e concentração. Agora, estamos começando essa coisa de cursos online e isso pode ser uma saída para essa geração que vem vindo. Seria interessante aproveitar as novas tecnologias para se preparar visando o pós-carreira.
<b>Você assumiu a presidência da Ponte neste ano, mas antes passou por vários cargos no clube. Sofreu preconceito em alguma conversa com dirigentes ou empresários?</b>
Sim, claro. Quer dizer, isso não deveria ser normal, mas é a realidade. Alguns brasileiros não foram educados para compartilhar os mesmos espaços de poder com pessoas que não vieram da mesma posição social, econômica e étnica. Temos na Ponte uma tradição de inclusão, e isso ajuda no enfrentamento, mas não estamos imunes. Quando anunciamos a nova diretoria, com vários negros, teve um conselheiro que fez um comentário nas redes sociais dizendo que achava que a nova diretoria seria composta por gente. Ele foi afastado do cargo, mas infelizmente não é o único caso.
<b>Machuca saber que isso é algo normal para algumas pessoas, né?</b>
Incomoda, claro, mas a verdade é que o Brasil tem uma longa dívida com os negros e isso não vai acabar de um dia para o outro. Fizemos uma abolição da escravidão incompleta. O negro nunca ficou livre, de fato. Continuamos presos no preconceito. E o que houve após a abolição foi uma substituição da mão de obra escrava por uma mão de obra imigrante. Ainda temos uma conta enorme para pagar com a população negra a médio e longo prazo. A curto prazo, a violência e a omissão incomodam muito. O Brasil escondeu o racismo durante muito tempo e vendemos para o mundo a ideia de que somos todos iguais. Durante a ditadura militar, o racismo era até proibido de ser discutido. Fomos discutir recentemente, no fim da década de 80.
<b>A censura não permitia?</b>
Exato. O racismo não é um problema biológico, é um problema político. Meus filhos, eu e todos que foram vítimas de algum tipo de preconceito, tiveram seus momentos de sentar no canto, procurar um ombro amigo e chorar de vez em quando, porque só quem sentiu na pele a dor do racismo sabe o que é isso. Tem o momento de expressão coletiva, mas tem o seu momento de individualidade. O racismo é aquele adversário que te pressiona e te faz jogar na retranca para não tomar o gol. Às vezes, ele te atinge de uma forma que faz você perder um jogador importante, mas você precisa se manter forte. Nossa estratégia é tentar transformar a luta de uma forma que você não possa se tornar uma presa fácil e não deixe o adversário chegar ao gol.
<b>O futebol tem uma ligação muito forte com os negros. Boa parte dos craques atuais e do passado são negros. Mesmo assim, ainda vemos muitos casos de racismo. Como explicar isso?</b>
Acontece que a gente sempre está preocupado com o racismo do vizinho. Muitas pessoas não percebem que são racistas. É comum associar o racismo como um problema dos Estados Unidos ou da África do Sul, por exemplo. Historicamente, se criou uma cultura no Brasil de que não havia racismo no Brasil e isso foi passado de geração para geração. O Brasil tem uma naturalização do racismo. É comum ver pessoas falando que não são racistas, mas dizendo coisas racistas, fazendo piadas, brincadeiras, dizendo coisas como ele nem parece que é negro, negro de alma branca. Isso provoca um efeito psicológico em algumas pessoas que elas não conseguem entender que isso é racismo. Isso fica muito evidente no futebol.
<b>Você acha que os atletas precisam se posicionar mais?</b>
Creio que sim. Os atletas têm se manifestado sobre temas, podemos dizer, mais leves, mas que não são menos importantes, só para deixar claro. Por exemplo: solidariedade aos heróis da saúde. Muitos atletas publicaram coisas nas redes sociais e é válido e merecido o apoio. Mas é preciso se posicionar em assuntos mais polêmicos. Todos nós esperamos por isso e devemos aproveitar que hoje temos liberdade para se manifestar. Tem que falar sobre racismo, fome, miséria… A questão é que quando você se coloca na posição de negro ou defende a causa, você entra em um debate em que muitas vezes o atleta não quer se expor. A atitude do Botafogo, com faixas de apoio antirracista, a Mercedes, que vai correr de carro preto, e o Lewis Hamilton participando de movimentos são exemplos de coisas que devem ser seguidas.