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Flip: Precisei escrever para sobreviver, diz Nastassja Martin

Nastassja Martin leu Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, quando tinha 16 anos e ficou assombrada. Foi seu primeiro de antropologia. Mais ou menos nessa época, procurando uma profissão, ela não encontrava nada que correspondesse ao que a inquietava desde os 7, 8 anos, mas que ela não sabia explicar. Algo sobre pessoas vivendo um modo de vida completamente diferente do dela, na França.

Não era sociologia. Nem biologia. Tinha a ver com natureza, com cultura e com a relação entre humanos e não humanos. Acabou na sociologia mesmo, e perto do fim do curso ganhou um livro de presente de um professor. Foi lendo Outras Naturezas, Outras Culturas que tudo se encaixou – nas palavras de Philippe Descola, ela descobriu a teoria que explicava o que sentia. Dali, foi um pulo para que ele a orientasse no mestrado.

Assim começou a história que levaria esta jovem francesa, hoje com 36 anos, para os confins do mundo – para encontros com os gwinchin, no Alasca, e os even, no extremo leste da Sibéria, grupos de pessoas que vivem na natureza profunda. E para, enfim, o encontro com o urso que mudaria tudo na sua vida – ou, em suas palavras, tornaria tudo mais real.

É sobre essa história, a experiência de se ver cara a cara com um urso, de lutar com ele e sobreviver, narrada em Escute as Feras (34), que a antropóloga fala neste sábado, 26, às 17h, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na mesa que divide com a navegadora Tamara Klink (é possível ver pelo YouTube).

"Eu experimentei em meu próprio corpo o que significa a cosmologia animista", resume a antropóloga nesta primeira entrevista concedida em Paraty, numa manhã quente e úmida bastante diferente da realidade desses lugares onde viveu a -50ºC. Mas ela estava ok com o calor tropical e conversou tranquilamente sobre esta história recente – de 2015 – que mistura pesquisa de campo, sonho, ancestralidade, vida e quase morte.

"Precisei escrever essa história para que ela saísse do meu corpo e eu pudesse sobreviver. Esse é o primeiro significado deste livro para mim: encerrar e compartilhar com outras pessoas para que eu possa criar de novo as minhas fronteiras e me libertar dessa história. Mas o livro é, também, um manifesto sobre como pensar a antropologia e a cosmologia indígena de uma forma diferente", explica – e aqui ela se refere também à questão do sonho, tratada por muitos como uma crendice e defendida por ela como algo "tão real quanto a mais dura das ciências".

Sonhos são importantes em <i>Escute as Feras</i>, que vai virar peça de teatro no Brasil, e em seu novo livro, <i>À LEst Des Rêves</i>, sobre a convivência com os nômades even, histórias míticas e o significado do sonhar – para ela, os sonhos nos preparam para alguma coisa, nos conectam com outras almas e outros seres e, em alguns casos, nos enlouquecem. "E sonhar é um lugar de resistência", ela diz ainda. Para que as pessoas reaprendam a sonhar, ela sugere que saiam de suas zonas de conforto.

Escute as Feras é um belo livro com reflexões acerca do nosso modo de estar no mundo e da nossa relação com os não humanos, sobre os significados deste momento de extremo risco, seu resgate, as operações, a recuperação e a volta ao local onde tudo começou para, como escreveu, e repetiu agora, reconstruir suas fronteiras.

Tem sido um longo processo de cura, ela diz, e de cura de muitas feridas diferentes, com cicatrizes visíveis e invisíveis. Depois de sete anos daquele fatídico dia de agosto, ela diz que as coisas estão melhorando. "Acredito que estou chegando ao final desse longo processo e é por isso que não gosto de falar daqueles minutos."

Dói relembrar, e a dor é física também. Mas ela fala brevemente, e diz que foi tudo muito rápido: "Você está na frente do urso, pensa merda, vou morrer e depois não morri. Ela estava sozinha, e na montanha não costuma ter urso. Daí a ideia, dos seus amigos de lá, de que o encontro tinha de acontecer.

Esta é sua primeira vez no Brasil. Em 2021, ela participou de uma conversa online com o indígena Ailton Krenak. "Fiquei muito tocada com a honestidade com que ele fala e conecta cosmologia e política sem rotular nada." Ainda neste sábado, em Paraty, ela estará, às 20h, na mesa Sonhos de Outra Terra Indígena, na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), com Sidarta Ribeiro, Hanna Limulja e Jean Tible. Davi Kopenawa estaria nesta conversa, se não tivesse contraído o coronavírus.

Quanto à sua próxima pesquisa de campo, Nastassja diz que a América Latina pode ser o destino.

<b>Veja a programação de sábado da Flip</b>

<b>Sábado, 26</b>

10h

Mesa 12: Cidades e floresta

O músico paratiense Luís Perequê, a educadora, filósofa e artesã Cris Takuá e o líder e cineasta indígena Carlos Papá, ambos do povo Guarani Mbya, trazem os saberes ancestrais e práticas locais para o centro do debate sobre a construção de sistemas abertos de cidade.

Luís Perequê (RJ)

Carlos Papá (SP)

Cristine Takuá (SP)

12h

Mesa 13: Memória Flip 20 anos

Autores que participaram das primeiras edições da Flip discutem os rumos, produções e movimentos dos últimos vinte anos do cenário literário nacional e internacional.

Pauline Melville (Guiana)

Bernardo Carvalho (RJ)

15h

Mesa 14: Diamante Rubro

As autoras reunidas aqui desviam-se da simplificação e se abrem a ambivalências. Elas ressignificam a ideia de narrar os acontecimentos, inspirando um exercício do ofício literário que está em constante combate com a realidade. Com linguagens construídas à luz de suas experiências, elas lançam reflexões sobre o papel da arte e a força da escrita.

Annie Ernaux (França)

Veronica Stigger (RS)

17h

Mesa 15: Desterrando o susto

A mesa propõe o encontro entre duas autoras que escrevem sobre solidão, ruptura e travessias. Com desejo e bravura, em viagens pelo mar e pela terra, elas incentivam a criação de novos espaços para criação e imaginação do público.

Nastassja Martin (França)

Tamara Klink (RJ)

19h

Mesa 16: Entrar no bosque de luz

No calor do giro decolonial e na revisão profunda de posições secularmente arraigadas sobre gênero e raça, esta mesa propõe o encontro de grandes talentos narrativos e perspectivas sócio-históricas diversas, de modo a pensar como a escrita constitui um espaço para revelar o protagonismo invisibilizado de populações oprimidas na tessitura do cotidiano.

Luiz Mauricio Azevedo (RS)

Saidiya Hartman (EUA)

Rita Segato (Argentina)

21h

Mesa 17: Palavra livre

A mesa panlusófona responde à emergência de novas vozes, às margens dos espaços clássicos de consagração literária, a sua força lírica, a um só tempo poética e política. Ao mesmo tempo, em diálogo com outras linguagens, a mesa contempla a performance e a memória do corpo, que se reafirmam nas artes dramáticas e na própria escrita.

Alice Neto de Sousa (Portugal)

Lázaro Ramos (BA)

Midria (SP)

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