Quando participou da Farra dos Guardanapos em Paris, em 2009, o então governador do Rio Sérgio Cabral Filho estava em pleno voo. Com a noitada na capital francesa comemorava, oficialmente, a Medalha Légion dHonneur que recebera do governo local. Secretamente, também celebrava, por antecipação, a escolha do Rio para sediar a Olimpíada de 2016, comprada com propina de US$ 2 milhões a integrantes do Comitê Olímpico Internacional (COI), segundo o Ministério Público Federal diria anos depois. A festança foi revelada em 2012, quando vieram a público as imagens dos secretários e empresários com as cabeças cobertas por panos brancos, no evento em homenagem ao mandatário. Virou símbolo da Era Cabral, simbolicamente encerrada com sua prisão preventiva em novembro de 2016, que abriu o período do ex-todo poderoso fluminense na cadeia – fechado agora pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que o tirou do regime fechado – ele vai cumprir domiciliar.
Tanto a orgia de novo rico ao lado de amigos e assessores eufóricos na noite regada a vinho francês como os seis anos de prisão fechada parecem sinais de que Cabral, com suas 23 condenações e penas de mais de 400 anos de prisão envolvendo corrupção, foi longe demais. Com origens no subúrbio carioca, formado em jornalismo, o ex-governador morou, quando criança, no Encantado, bairro modesto da zona norte. É filho de Sérgio Cabral, escritor, jornalista, pesquisador de música popular, ex-vereador e conselheiro aposentado do Tribunal de Contas do Município do Rio. Foi o pai que o levou para a política, com cargo na TurisRio, estatal de turismo, em 1987.
Em seu primeiro mandato, nos anos 90, Cabral Filho dirigia um carro usado. Discreto, evitava polêmicas. Na briga entre o presidente da Assembleia, José Nader, e o chamado Grupo Ético, mantinha-se neutro. Na época, era do PSDB. Mas em 1995 foi eleito presidente da Assembleia Legislativa fluminense. Formou com o primeiro-secretário, Jorge Picciani, e o líder Paulo Melo um trio que adversários consideravam quase imbatível. O triunvirato influiu em todos os governos fluminenses nos dez anos seguintes, até que Cabral, após um período no Senado, foi eleito governador, em 2006. Foi quando o grupo chegou diretamente ao Executivo, que dominaria por outra década. Foi então que Cabral precisou mudar de lavador de dinheiro. O escritório que fazia o "trabalho" considerou não ter como processar tantos recursos ilegais. Uma mudança e tanto para quem, na adolescência, sob a ditadura, militou no clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB), coordenou a campanha do pai e que tinha 29 anos ao ganhar o primeiro mandato, com o slogan: "Meus valores são outros".
Os valores levados pelo então jovem Cabral para as campanhas eleitorais na década de 1990 não perduraram. O ex-cacique do MDB se tornou o símbolo da corrupção revelada pela Operação Lava Jato. Era o único político de destaque que ainda estava preso em consequência das investigações dos procuradores do Ministério Público Federal.
<b>Amigo de Lula
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Ao assumir o governo do segundo maior Estado do País, Cabral se aproximou do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), cuja reeleição apoiou no segundo turno. Posteriormente, ligou-se à presidente Dilma Rousseff. A proximidade de Cabral e Dilma foi explorada em campanhas, discursos, vídeos e fotos durante a campanha da petista ao Planalto com o bordão "estamos juntos".
O prestígio de Cabral e sua proximidade do petismo foram tão grandes que chegou a ser cogitado para concorrer a vice-presidente na chapa encabeçada pelo PT. A partir da explosão dos primeiros casos de corrupção revelados contra Cabral, porém, Dilma se distanciou. A ex-presidente chegou a divulgar uma nota para marcar a distância que, segundo ela, havia entre os dois.
"Sérgio Cabral Filho jamais foi aliado da ex-presidente da República. Tanto é verdade que, nas eleições presidenciais, ele fez campanha para o principal adversário de Dilma nas eleições de 2014: o senador Aécio Neves (PSDB-MG). Durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, Sérgio Cabral orientou seus liderados no PMDB a votarem favoravelmente ao afastamento dela da Presidência da República", afirmou a ex-presidente Dilma Rousseff à época em nota.
Envolvido em dezenas de denúncias de corrupção, o ex-governador foi preso em seu apartamento, no Leblon, na Operação Calicute, em 17 de novembro de 2016. Foi a primeira das 55 operações promovidas pela versão carioca da Lava Jato. Mais de 550 pessoas foram denunciadas e mais de 300 chegaram a ser presas.
Seu período na cadeia foi turbulento, com algumas mudanças de prisão, por causa de supostas regalias. Segundo procuradores, foi Cabral o responsável pela instalação ilegal de uma videoteca na Cadeia José Frederico Marques, em Benfica, onde estava preso. Uma batida do MP identificou indícios de regalias, como sinais de compras de comida em restaurantes caros – o problema se repetiria, mesmo com as mudanças do detento.
Segundo a Procuradoria da República, o ex-governador ainda tinha influência na máquina fluminense. Antes da chegada de Cabral, a unidade teria recebido melhorias, incluindo colchões de boa qualidade, usados, ironicamente, por atletas na Vila Olímpica durante a Olimpíada de 2016 que trouxera para o Rio. Por causa das regalias, o secretário de Administração Penitenciária, Erir Ribeiro, foi afastado, por ordem da Justiça, do governo de Luiz Fernando Pezão.
<b>Acorrentado
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Cortar regalias de Cabral foi um dos motivos alegados pelo MPF para conseguir a transferência para o Complexo Médico-Penal de Pinhais, no Paraná, em janeiro de 2018. Sua chegada para o exame de corpo de delito ao Instituto Médico-Legal de Curitiba, contudo, causou choque e polêmica. O ex-governador foi retirado da "caçamba" do camburão, acorrentado como um bicho, com algemas nas mãos, pés e ventre, sob escolta de policiais encapuzados, e exibido às equipes de imprensa. Foi a primeira vez em que um preso da Lava Jato foi tratado dessa forma, normal segundo a PF, mas considerada por juristas excessiva, espetaculosa e desnecessária para um detento de perfil não violento. Com a proximidade das câmeras e microfones, reclamou do tratamento com um dos agentes.
"O senhor está me machucando", disse, subitamente deixando a expressão de abatimento e encarando o agente que o segurava pelo cós da calça. "O senhor poderia me largar?"
"Eu não vou largar. O senhor é preso nosso", respondeu o policial.
O episódio teve repercussão entre advogados e mesmo no Judiciário, que viram no episódio violação de direitos. Houve, porém, quem considerasse justo o tratamento ao preso acusado de chefiar um esquema que, durante duas décadas, pilhou sistematicamente os cofres estaduais fluminenses.
O tratamento duro prosseguiu em Pinhais. Lá, ele começou seu período na cadeia com quinze dias de solitária – sem banho de sol, sem comunicação com outros presos, sem acesso a meios de comunicação. De novo, advogados observaram que nunca um preso da Lava Jato passara por tratamento semelhante. Depois do período de isolamento, o ex-governador foi transferido para uma cela pequena, com camas de alvenaria e colchonetes. Dividiu o espaço com outros dois detentos.
<b>Liberdade</b>
Em 10 de dezembro, a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio revogou duas ordens de prisão contra o ex-governador. Autorizou-o a cumprir prisão domiciliar se não houvesse nenhuma outra ordem de prisão em vigor contra ele. O atual governador do Rio, Cláudio Castro (PL), chegou a ser informado da ordem de levar Cabral para a prisão domiciliar. Mas pediu aos agentes que esperassem que dúvidas sobre a decisão fossem sanadas.
No dia seguinte, o oficial de Justiça Antônio Carlos Gonçalves fez uma pesquisa no Banco Nacional de Mandados de Prisão e não encontrou outras ordens contra Cabral. Então foi à Unidade Prisional da PM do Rio, em Niterói, para soltá-lo. Mas era só um defeito no sistema. Ainda havia uma condenação pendente.
Em junho de 2017 o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, condenou Cabral a 14 anos e dois meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. Foi a primeira condenação do ex-governador na Lava Jato, por ter recebido propina de uma construtora em troca do contrato com o governo estadual para terraplanagem do Complexo Petroquímico do Rio (Comperj). Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região em 30 de maio de 2018.
Na época, o STF considerava que bastava uma condenação em segunda instância (como é o caso do TRF) para que réus fossem presos, mesmo que ainda tivessem direito a recurso. Em 7 de novembro de 2019, no entanto, o STF mudou o entendimento – desde então, só o fim da ação justifica a prisão da pessoa condenada. Apesar da mudança, Cabral não foi libertado porque havia outras ordens de prisão pendentes.
<b>Cabeça grisalha
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A pouco mais de um mês de fazer 60 anos, com cabelos grisalhos, Cabral sabe que ficou no passado o tempo em que viajava várias vezes por ano à Europa – deixando o governo a cargo do vice, Luiz Fernando Pezão – para se hospedar em hotéis de luxo ou acompanhar eventos como shows do U-2. Também não voltará a época em que, governador, pretextando necessidade de segurança, usava o helicóptero do Estado para se deslocar para o trabalho, todo dia. Ia então de carro, sob escolta, do Leblon à Lagoa, onde embarcava na aeronave para um curto voo até o Palácio Guanabara, em Laranjeiras. O barulho dos pousos e decolagens gerava reclamações de vizinhos.
Nesse helicóptero, Cabral e sua família iam para a casa do então governador em Mangaratiba. Isso quando Cabral não viajava, sem que ninguém soubesse, para lugares com praias para ricaços, como a ilha de Saint Barth, no Caribe. O aparelho chegou a voltar ao Rio apenas para pegar o cão Juquinha, que pertencia a filhos do mandatário. Depois da prisão e dos escândalos, ele perdeu o imóvel, leiloado pela Justiça por R$ 6,4 milhões.
A justificativa de Cabral para a vida de milionário era o escritório de advocacia da sua então mulher, Adriana Ancelmo – Coelho, Ancelmo e Associados. A banca, que foi modesta até sua chegada ao governo, teve crescimento exponencial durante seu governo, conforme revelou o <b>Estadão</b>. A Justiça identificou os pagamentos como indício de lavagem de dinheiro. Isso levou a ex-primeira dama à cadeia, da qual a acusada já saiu, antes de Cabral, de quem se separou.
Segundo fontes próximas, Cabral esperou com tranquilidade a decisão do STF que o libertou. Esse clima de serenidade foi interrompido pela notícia de que um dos seus cinco filhos, José Eduardo, era alvo de uma operação contra o comércio ilegal de cigarros. Precisou de atendimento médico, e Zé Cabral, como é conhecido o jovem de 26 anos, depois de fugir, apresentou-se para ser preso. Depois, foi solto.
Também na cadeia, o pai se recompôs. Faz exercícios, lê muito. Sabe que a política, como conheceu no Estado do Rio, mudou completamente, e que é agora desimportante no cenário do poder – outro de seus filhos, Marco, pela segunda vez não conseguiu se eleger deputado. Já deixou claro a pessoas próximas saber que uma retomada da carreira política é inviável. Acalenta um projeto: quando libertado, tornar-se consultor político. Um negócio que mesmo pessoas que o conhecem há anos consideram difícil para quem, na vida pública, teve e perdeu tudo. Talvez não haja quem queira se arriscar publicamente a ter como conselheiro um ex-governador condenado dezenas de vezes por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Mas seria uma forma de o ex-governador ficar próximo do mundo onde cresceu. "Cabral tem a política no sangue", diz um amigo, ex-companheiro de disputas eleitorais. O ex-governador, porém, deve pelo menos suspeitar que seu voo terminou.