A descoberta de uma cobra de quatro patas que viveu há 120 milhões de anos onde é atualmente o sertão nordestino ganhou as páginas da edição desta sexta, 24, da revista Science, mas não arrancou aplausos da comunidade científica brasileira. Muito menos das autoridades nacionais.
Trata-se de um fóssil excepcionalmente bem preservado e potencialmente revolucionário para o estudo da evolução de cobras e lagartos.
O problema é que nenhum dos autores da pesquisa é brasileiro, e suspeita-se que o fóssil tenha sido retirado ilegalmente do País. A lei brasileira proíbe, desde 1942, a exploração e retirada de fósseis do território nacional por estrangeiros sem autorização do poder público.
Os autores do trabalho, da Inglaterra e da Alemanha, dizem que a peça estava “havia várias décadas” em uma coleção particular e que não há informações sobre onde, como, quando ou por quem ela foi coletada. As características da rocha, porém, indicam que o fóssil veio da Chapada do Araripe, um grande sítio fossilífero na divisa dos Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. Mais especificamente, da formação Crato, uma parte da chapada que tem um tipo muito característico de rocha.
“Não tenho como provar que (o que os autores estão dizendo) não é verdade, mas eu não acredito”, disse ao Estado o chefe da Divisão de Proteção de Depósitos Fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Felipe Chaves. “É um material muito nobre para ter ficado guardado tanto tempo sem despertar o interesse de ninguém.” O mais provável, segundo ele, é que o fóssil tenha saído ilegalmente do País. “Vamos solicitar à Polícia Federal que abra investigação.”
O presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, Max Langer, concorda. “Pode até ter acontecido como eles (os autores) dizem, mas é muito pouco provável. A maior probabilidade é que esse fóssil saiu há poucos anos do Brasil, de forma ilegal”, avalia Langer, professor do Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
O tráfico de fósseis é um problema crônico e disseminado no Araripe.
Procurado pelo Estado, o autor principal da pesquisa, David Martill, disse que viu o fóssil pela primeira vez três anos atrás, durante uma visita com seus alunos ao Museu Bürgermeister-Müller, em Solnhofen, na Alemanha. Segundo ele, a peça estava exposta como um “fóssil de vertebrado desconhecido”. “Me disseram que o espécime veio de uma coleção privada”, afirma Martill, professor da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra.
Martill é um crítico conhecido da lei brasileira de proteção aos fósseis, que ele diz considerar anticientífica e xenófoba.
“Pessoalmente, não dou a mínima sobre como o fóssil saiu do Brasil ou quando ele saiu do Brasil. Isso é irrelevante para o significado científico da peça”, afirma Martill.
“Os paleontólogos brasileiros podem acreditar no que eles quiserem”, desafia o britânico. “Não há nenhuma etiqueta no fóssil dizendo quando ou como ele foi coletado. Ele só foi reconhecido como sendo do Brasil porque eu sou um especialista na formação Crato.”
Elo perdido?. Hussam Zaher, pesquisador do Museu de Zoologia da USP, questiona o estudo também do ponto de vista científico. A análise que os autores fazem do fóssil, segundo ele, é “furada”.
“Não há nenhuma evidência irrefutável de que esse bicho seja uma cobra”, afirma Zaher, que ajudou a descrever duas espécies de cobras com patas e tem vários de seus trabalhos citados no artigo de Martill. “Está muito mais para lagarto do que cobra”, diz.
“Bem, é meio que uma cobra-lagarto, porque tem patas. Mas é mais cobra do que lagarto”, rebate Martill. Na interpretação dos autores, trata-se de uma forma intermediária (“elo perdido”) entre lagartos e cobras, com características dos dois grupos. O animal tinha cerca de 20 centímetros e a espécie foi batizada de Tetrapodophis amplectus. Não é a primeira vez que se encontra uma cobra com patas, mas todas as espécies descobertas até agora tinham apenas duas patas (traseiras), nunca quatro.
Se a interpretação dos autores estiver correta, o Tetrapodophis é mesmo uma descoberta espantosa, que pode revelar muitos detalhes sobre a evolução das cobras.
A teoria predominante é que as serpentes evoluíram de uma linhagem de lagartos que foram reduzindo suas patas gradativamente, até perdê-las por completo (ao longo de muitas gerações). Há dúvidas, porém, se essa transição ocorreu no ambiente marinho ou no meio terrestre. Se o Tetrapodophis é mesmo uma cobra primitiva, suas características anatômicas sugerem que a transformação ocorreu em terra.
Além de Martill, assinam o trabalho Nicholas Longrich, da Universidade de Bath, também na Inglaterra, e o alemão Helmut Tischlinger, sem filiação acadêmica. Longrich disse ao Estado que, se dependesse dele, o fóssil seria devolvido para o Brasil. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.