Entre 1590 e 1592, Agnes Sampson foi estrangulada e queimada por usar bruxaria para enviar tempestades contra o navio do rei Jaime VI da Escócia. Obcecado pela ameaça e inspirado pela experiência vivida, o monarca, que também reinou na Inglaterra, escreveu Daemonologie, um tratado que aprovava a caça às bruxas. Mais tarde, o livro serviu de base para a criação de Macbeth, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). Já o episódio do temporal enviado por uma bruxa tomou forma em A Tempestade, última peça escrita pelo bardo.
“Shakespeare era ruim de inventar histórias. Ele copiava tudo, pegava histórias já prontas”, brinca o diretor mineiro Gabriel Villela, que estreia o espetáculo no dia 21, em comemoração aos 50 anos do Teatro Tuca. “A grande diferença e grandeza do autor era sua forma de contar essas histórias. Aí tudo mudava.”
Na trama, uma ilha é o campo de batalha sob o domínio do mago Próspero, duque de Milão por direito, que planeja restaurar sua filha Miranda ao poder. Vivido por Celso Frateschi, ele lança uma tempestade para atrair até a ilha o navio de seu irmão e usurpador Antônio e de seu cúmplice, o rei Alonso de Nápoles “Ele percebe que existe violência e formas de poder autoritárias que não funcionam mais e quer fazer justiça, muito embora seja também um personagem autoritário e manipulador”, completa. O mago tem a seu serviço Ariel (Chico Carvalho), um espírito assexuado e Caliban (Helio Cicero), um monstro escravo que se apresenta como um grotesco fauno que utiliza um pote de barro para reverberar sua voz. Essa escolha se estende por toda a montagem e os potes têm origem nos antiquários de Minas Gerais. “O vaso entra para dar um artificialismo necessário muito comum no teatro clássico e grego”, explica Villela. “O barro representa a origem do Homem em muitas religiões e o sopro criador está presente na nossa Bíblia. O vaso cria algo mítico na medida em que adultera o timbre natural do ator. A busca é pela região do mito na qual pertence a voz do ator.”
Diretor de detalhes, o mineiro cuida da criação e acompanha a produção dos figurinos, adereços e cenário, direto de seu ateliê na cidade natal de Carmo do Rio Claro. Na segunda semana de ensaios, os atores já haviam recebido o figurino, com os tecidos tingidos em tons ocre e marrom por José Rosa e bordados por Giovanna Villela. As bolas sopradas de vidro murano que trazem escritos nomes dos signos do zodíaco são assinadas, entre outros objetos, pelo artista Shicó do Mamulengo. Com isso, a representação da ilha ganha diversas referências que incluem festejos a Iemanjá e o teatro de máscaras gregas. “A ilha é como Minas, um Estado interno do Brasil. É uma ilha dentro de todos nós. Na peça, ela é composta por vários pedaços terras, máscaras e também pelos personagens de Shakespeare”, conta o diretor. “Os atores estão pintados com o barro de Minas. É uma força telúrica, da psique do nosso povo. Parece que eles foram chamados para uma viagem no Rio São Francisco e lá há um encontro da água doce com a água do mar.”
Essa caligrafia cênica também acompanha as outras montagens de Shakespeare por Villela, que em diferentes medidas cunhou traços da cultura regionalista, como em Sua Incelença, Ricardo III, com o grupo Clowns de Shakespeare, além Sonho de uma Noite de Verão com a Cia de Dança Palácio das Artes de Belo Horizonte, e em seu Romeu e Julieta com o Grupo Galpão que se apresentou no Globe, o teatro de Shakespeare, em Londres, além de dirigir Marcello Antony e Claudio Fontana no sangrento Macbeth. A trilha sonora de A Tempestade é executada ao vivo e vai na contramão do título da montagem. Nada de trovões ou gritaria. Como explica o diretor, o volume das canções se aproxima às histórias contadas às crianças antes de dormirem. “O mundo já está muito bravo e cruel. Se você grita, você mata a imaginação. Apesar de eu não ser um primor de cortesia como diretor e como ser humano, o espetáculo é muito cortês e delicado com a plateia.”
Aos 58 anos, Villela é um sonhador. Em diálogo com famosa frase “nós somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos”, dita por Próspero, para ele, não podem faltar pernas. “Eu não sou dado a sonhos paralíticos.”