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Glauber, ainda e sempre

Completam-se nesta segunda-feira, 22, 35 anos da morte de Glauber Rocha, em agosto de 1981. Uma data redonda presta-se às reavaliações, e essa mais que outras, porque justamente neste domingo, 21, está terminando na Sala Cinemateca uma retrospectiva da obra do mais polêmico – emblemático? – autor da história do cinema brasileiro. Glauber pensou o Brasil, revolucionou o cinema, polemizou com seus contemporâneos. Muita coisa para um artista que morreu cedo, aos 42 anos. Oficialmente, Glauber morreu de septicemia, uma infecção generalizada. Mas há quem diga, poeticamente, que morreu de dor e tristeza.

Exilara-se do Brasil, e escolhera Sintra, em Portugal, para viver (e morrer), naquele 22 de agosto de 1981. Eryk Rocha tinha 3 anos. Guarda lembranças confusas, ou então as memórias foram implantadas em seu imaginário pelos sucessivos relatos sobre o pai mítico. Não é fácil ser filho de um gênio e achar o próprio caminho no mesmo território, o do cinema, em que se exercitou esse pai. Desde 2002, com Rocha Que Voa, e depois através de Quimera, Intervalo Clandestino, Pachamama, Transeunte, Jards e do inédito Cinema Novo, pela via do documentário ensaístico e poético, ou da ficção também investigadora da linguagem, Eryk vem construindo uma obra que não fica à sombra.

Agora mesmo, ele filma na Amazônia paraense. Glauber é uma referência e uma influência, admite, mas o importante é aqui, e agora. Em maio, ao apresentar Cinema Novo em Cannes Classics, Eryk teve oportunidade de pagar tributo não apenas ao pai, mas a toda sua geração, que refletiu sobre o País de forma generosa, sonhando com a revolução, e não só da arte. À reportagem, ele disse que seu documentário “flagra um momento de tensão histórica e de violência bem próximo do que vivemos hoje”, com o impeachment. “Há uma sequência crucial no meu filme que aborda o golpe e, em seguida, o Ato Institucional nº 5, mostrando como afetaram o País com uma ruptura do processo democrático, num acirramento da ditadura”. E Eryk prossegue com uma análise provocativa – “É da natureza da América Latina o fato de a nossa história viver de ciclos sempre marcados por golpes. A questão, antes, nos anos 1960, é que havia uma ação dos militares. Agora, quem faz a ação é o Judiciário, que se politiza, e televisionado ao vivo e em cores, numa relação com a mídia.”

Esses ciclos a que se refere Eryk Rocha foram pensados por seu pai e estão na origem da descontinuidade que dá o tom ao cinema de Glauber. O transe. A dicotomia – Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. O demagogo Vieira e o ditatorial Diaz de Eldorado, em Terra em Transe. Neste domingo, em seu encerramento, a retrospectiva do autor na Sala BNDS da Cinemateca apresenta três filmes – O Leão de Sete Cabeças/Der Leone Has Sept Cabezas, História do Brasil e Claro. O filme africano de Glauber, seu ataque às potências coloniais que fatiaram a África – daí o título multilíngua. O guerrilheiro latino Pablo e o líder negro Zumbi pegam em armas e combatem mercenário alemão ligado ao imperialismo ianque. Segue-se a interpretação dialética que o diretor faz da história do Brasil, numa colagem de filmes e imagens variadas que fazem a síntese de quase 500 anos de submissão aos interesses estrangeiros. E o mais estranho de todos, Claro.

Em Roma, cruzam-se o papa, irmãos gêmeos, um soldado norte-americano que regressa do inferno do Vietnã e uma travesti. O filme de 1975 foi o último que Glauber fez antes de retornar ao Brasil, e ele intervém em cena com Juliet Berto e o também diretor Carmelo Bene. Seria interessante – será? – se o cinéfilo, a título de homenagem, revisse hoje esses filmes que não costumam ser reputados entre os maiores do autor. O Glauber da última fase, observa Jean Tulard no Dicionário de Cinema, deixa o barroco invadir cada vez mais suas imagens. O desequilíbrio toma lugar, ainda segundo Tulard. É desequilíbrio ou descontinuidade, uma atitude estética – e política? Uma coisa é certa. Glauber morreu desesperado. Com o Brasil, o cinema. Do sonho cine-novista – dos escombros dessa obra imensa -, o filho reflete e (re)constrói o cinema do futuro.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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