Quem pôde ler as edições do Jornal do Brasil do final de 1950 e dos anos imediatamente seguintes desfrutou de um prazer estético-intelectual raramente proporcionado por uma publicação brasileira. Em suas páginas, havia seriedade de pesquisa, talento verbal e elegância visual em abundância.
Este leitor privilegiado, certamente, não se surpreenderia se soubesse que a compositora e professora de Música norte-americana Marion Verhaalen, usou, em 2001, uma entrevista concedida por Camargo Guarnieri ao Jornal do Brasil, em 1974, na biografia dele escrita por ela – “Camargo Guarnieri – Expressões de uma vida” – e editada pela USP, com tradução de Vera Guarnieri, uma descente deste grande compositor e regente brasileiro.
As edições do Jornal do Brasil, naquele período, acumularam a criatividade deixada durante suas permanências na Redação do jornal pelo cronista e novelista Odylo Costa, filho, no cargo de diretor, pelos poetas Mário Faustino, e Ferreira Gullar, na produção de seus textos, pelo escultor e artista plástico Amilcar de Castro, no designer revolucionário de suas páginas, e, por fotógrafos cujas imagens, densas e belas, mostravam interpretações visuais inteligente de fatos e pessoas. O jornal se destacou na História da Imprensa Brasileira graças a esta criatividade manifestada com audácia, refinamento textual e limpeza gráfico-visual.
Na entrevista, Camargo Guarnieri forneceu uma informação importante porque indicava o alinhamento estético procurado por ele entre as várias correntes musicais então existentes. Guarnieri disse ao jornal que pretendia dedicar uma de suas obras a seu antigo professor de Composição Musical, o diretor de orquestra, professor e compositor italiano Lamberto Baldi. Esta informação foi incorporada ao livro de Marion Verhaalen porque mais do que uma homenagem prestada por Guarnieri, era uma revelação das influências que ele poderia ter sofrido através de Lamberto, cujo gosto musical o fazia reger concertos com músicas de Claude Debussy, Paul Hindemith, Arthur Honegger, Stravinsky, Eduardo Fabini e Héctor Tosar.
Independentemente disto, o fato de uma personalidade da cultura nacional como Guarnieri receber um jornalista do jornal era suficiente para valorizar o jornal. Mostrava seu prestígio, entre nossos artistas. O Caderno Cultural encartado semanalmente nele era lido por atores, escritores, cineastas e compositores com prazer e admiração.
Para ouvir Guarnieri, foi designado o jornalista Acyr Castro. Um decisão sábia. O paraense Acyr era um típico membro daquela elite do jornalismo do País abrigado nas Redações do Jornal do Brasil. Apaixonado por Cinema, em São Paulo, ele se juntaria ao crítico de Teatro Sabato Malgaldi e ao crítico de Artes Plástica Alberto Beutenmüller para juntos organizarem a atual Associação Paulista de Críticos de Artes, como informa Franssinete Florenzano, em seu blog.
Ao longo dos anos, Acyr iria escrever mais de dez livros com Poesia, Ensaio, Crítica Literária e Cinematográfica. Mas sua duradoura atuação na sucursal do Jornal do Brasil – interrompida apenas duas vezes nas convocações para realizações de matérias na sede da publicação, no Rio de Janeiro – era um enigma para seus colegas de Redação. Ninguém entendia o que manteve por 12 anos no jornal, distante de Belém, onde nascera, aquele neto de um poeta, músico e professor de Música – João Pereira de Castro – e de uma maestrina, compositora e professora – Antônia Rocha Pereira de Castro. Os dois responsáveis pelo conservatório no qual ficou a herança musical deixada na capital do Pará por Carlos Gomes, quando ele lá viveu seus últimos anos e onde morreu.
Poucos amigos sabiam que Acyr tinha saído de sua terra, num dia de 1965, em plena Ditadura Militar. Os motivos ele tornou públicos muitos anos depois, já reinstalado em Belém, havia bastante tempo, ao ser procurado por um grupo de jovens da Universidade Federal do Pará envolvidos numa pesquisa sobre Cinema na Amazônia.
A eles, Acyr contou:
“Em 1965, nós preparávamos aqui em Belém o 1º Festival Norte do Cinema Brasileiro. Tivemos de viajar. O colunista Edwaldo Martins e eu, para o Rio de Janeiro, o poeta João Paes Loureiro e o acadêmico pesquisador Isidoro Alves, para São Paulo. O festival tinha sido aprovado pelo prefeito de Belém, Osvaldo Melo. Era parte das comemorações oficiais do aniversário da cidade. O prefeito, inclusive, pagou nossas passagens. No Rio de Janeiro e em São Paulo, começamos a montar o júri do festival. Convidamos e aceitaram nossos convites três diretores de Cinema – Glauber Rocha, Roberto Santos e Nelson Pereira dos Santos – e dois críticos de Cinema cariocas – Moniz Viana e Alex Viana. Missão já cumprida, nós, recebemos no Rio, um telefonema desesperado de Belém, feito pelo pesquisador de Cinema Pedro Veriano: ‘Não vai mais haver festival’.
Num único dia, o prefeito tinha nomeado outra comissão para a organização do festival, ela se reuniu, alegou que o evento era inviável economicamente, o prefeito aceitou a alegação, e, mandou publicar seu cancelamento no Diário Oficial. Aquela guinada, tinha, na verdade, outra motivação: nós teríamos convidado só comunistas. Voltamos às pressas para Belém. O cancelamento estava consumado. Então, eu e o Edwaldo tivemos de produzir ‘desconvites’. Fizemos isto, como éramos obrigados, mas, neles, contamos a verdade. A imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, já engajada no festival, então, saiu em nossa defesa. No ‘Última Hora’, o Stanislaw Ponte Preta produziu uma página inteira, com o título: ‘Festival de Besteira Que Assola o País chega a Belém’. A partir daquele instante, se instalou uma perseguição feroz somente à minha pessoa.
Um dia, eu saí do Cinema Olímpia e vinha caminhando para minha casa, na Avenida Presidente Vargas, quando me vi cercado e agredido por um grupo paramilitar. Entrei em casa, ensanguentado. Não demorou muito, apareceu lá o Edwaldo Martins. Que me disse: ‘A coisa está muito pior do que imaginas. É a Linha Dura da Aeronáutica que quer te pegar. Nos meios sociais já estão falando isto. Como não eles têm prova alguma contra ti, não podem nem abrir processo. Então, querem te matar, alegando que resististes à prisão. Não podes nem botar o rosto na janela’. O Edwaldo comprou passagem, com nome falso, para mim. E eu viajei. Fui embora. Só não morri porque tive sorte”.
Aquele ódio contra Acyr era antigo, provocado por sua militância, antes de 1964, com menos de 30 anos de idade, no Partido Socialista do Pará. E fora agravado pelo provincianismo de alguns produtores culturais da época, na região. Um deles, Líbero Luxardo, diretor de sonolentos longas metragens, cujos únicos méritos eram o de terem sido produzidos na Amazônia e trazerem imagens da região, encaradas atualmente como documentos históricos. A fragilidade estética daquela produção Acyr demonstrou numa crítica arrasadora publicada em jornal, no momento do lançamento do filme “Um dia qualquer”, de Luxardo.
Ressentido pela crítica, Luxardo pôde se vingar, depois do Golpe Militar, por ter acesso aos bastidores do poder discricionário em vigência também no Pará.
Se quisesse, Acyr poderia ter revidado, anos depois, já na fase de redemocratização do Brasil. Pois, de 1982 a 1985, ele ocupou o cargo de Secretário de Cultura do Pará. Àquela altura, Luxardo estava fragilizado, física e financeiramente. Terminou morrendo. A família dele então se viu forçada a pedir recurso público a Acyr para fazer o enterro. Mas, Acyr, preferiu agir de modo magnânimo: atendeu gentilmente à família de Luxardo.
A história do repórter que entrevistou Camargo Guarnieri terminou há poucos dias. Como Luxardo, ele morreu pobre. Não havia utilizado o cargo oficial para enriquecer, como se tornou usual, no Brasil. Doente, mantinha-se isolado, mergulhado numa profunda religiosidade.
Para os amigos ele deixou a lembrança do prazer com que descrevia a surpresa quando, num dia, em sua casa de Belém, foi chamado às pressas para frente do televisor, por seus familiares. Sintonizado numa produção dramática da Rede Globo, o aparelho mostrava em sua pequena tela o ator Reginaldo Faria, sentado, no papel de um personagem que lia um livro. Ao mostrar em primeiro plano sua capa a câmara permitiu ver que se tratava de “Cinema – Um close nos 100 anos”, escrito por Acyr e publicado por uma pequena editora paraense. O exemplar da obra tinha chegado misteriosamente ao Rio de Janeiro. E, de posse dele, encantado, Reginaldo Faria, – também ator, autor e diretor de Cinema – quis, com espontaneidade e generosidade, exibi-lo num merchandising caríssimo, feito sem nenhum pagamento e sem ele sequer conhecer pessoalmente Acyr.