O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negou, no ano passado, 1.339 pedidos de informações sob a justificativa de conter dados pessoais. A decisão, na prática, impõe um sigilo de 100 anos sobre os documentos solicitados.
Entre as informações colocadas em sigilo centenário pela gestão Lula estão a agenda da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja; comunicações diplomáticas sobre o ex-jogador Robinho, condenado na Itália por estupro; e a lista dos militares do Batalhão de Guarda Presidencial que estavam de plantão durante o ataque à Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023.
Os dados mostram que o petista manteve mesmo volume de decisões a favor do sigilo adotado na gestão de Jair Bolsonaro (PL). Em 2022, 1.332 pedidos foram negados sob alegação de que os documentos continham informações pessoais, apenas sete casos de diferença entre o último ano do ex-presidente e o primeiro da gestão petista.
O auge de respostas negadas por motivo de informação pessoal ocorreu no ano de 2013, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Naquele ano, foram concedidas 3.732 negativas desse tipo, de acordo com a série histórica disponibilizada pela Controladoria-Geral da União (CGU). Os números foram analisados pelo Estadão em parceria com o Datafixers.org.
O levantamento considerou todos os pedidos negados cujo motivo da decisão foi “dados pessoais”, conforme o sistema da CGU. O artigo 31 da Lei de Acesso à informação diz que “informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem terão seu acesso restrito pelo prazo máximo de 100 anos a contar da sua data de produção”.
Há casos em que o órgão, ao negar a informação, não cita na resposta, especificamente, o artigo da Lei de Acesso à Informação (LAI) que impõe o sigilo de 100 anos, mas, ainda assim, considera se tratar de dados pessoais.
Procurada, a CGU afirmou que a gestão anterior usava o sigilo de 100 anos indevidamente e que há razões legítimas para que o segredo seja empregado, a depender do caso. O órgão também aponta para uma queda de 15% em relação a 2022, considerando o total de pedidos feitos.
Durante e após a campanha eleitoral de 2022, Lula prometeu acabar com o sigilo de 100 anos de Bolsonaro. O dispositivo está previsto desde a sanção da Lei de Acesso à Informação (LAI), em novembro de 2011 – apesar de o fato negativo ser atribuído por Lula a seu antecessor.
“É uma coisa que nós vamos ter que fazer: um decreto, um revogaço desse sigilo que Bolsonaro está criando para defender os amigos”, disse Lula a uma rádio do interior de São Paulo, em junho de 2022.
“Qualquer pessoa podia saber o que acontecia no nosso governo. Agora, o Bolsonaro, não. O Bolsonaro dizia que não tem corrupção, mas decreta sigilo de 100 anos para qualquer denúncia contra ele. Decreta sigilo de 100 anos para o filho, para os amigos, para o Pazuello. Nada dele é investigado. Toma aqui 100 anos, para quando ele não existir mais”, acrescentou Lula, que na época estava em campanha para assumir seu terceiro mandato como presidente da República.
Entre os sigilos impostos pelo governo Bolsonaro e bastante criticado por seus adversários estava a lista de convidados da então primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) no Palácio do Alvorada. A informação foi mantida em segredo pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) até 11 de janeiro de 2023, quando a gestão Lula revogou esse sigilo, conforme revelou o Estadão. O governo petista, no entanto, preferiu manter em segredo a lista de visitantes da atual primeira-dama, a Janja.
Em 6 de novembro de 2023 um cidadão pediu à Casa Civil da Presidência da República, com base na LAI, os nomes das pessoas que visitaram a esposa de Lula nos Palácios da Alvorada e do Planalto, além das datas, justificativas dos encontros e cargos dos visitantes. “Os registros de entrada e saída de pessoas em residências oficiais do Presidente e do Vice-presidente da República são informações que devem ser protegidas por revelarem aspectos da intimidade e vida privada das autoridades públicas e de seus familiares”, argumentou a Casa Civil, ao negar o pedido.
Apesar de não citar o artigo 31 da LAI, a justificativa baseada na “intimidade e vida privada” da pessoa faz referência justamente ao trecho da legislação.
O Ministério das Relações Exteriores se negou a informar as comunicações diplomáticas, os chamados telegramas, sobre o ex-jogador de futebol Robson de Souza, o Robinho, e o empresário Thiago Brennand. Ambos foram condenados por estupro.
O Exército também impôs sigilo centenário sobre a lista dos integrantes alocados no Batalhão da Guarda Presidencial durante o 8 de janeiro e sobre a ficha militar do tenente-coronel Mauro Cid, ex-braço direito de Bolsonaro. Já o Ministério da Educação guardou sob sete chaves processos disciplinares que investigaram condutas de servidores.
Veja os casos em que o governo Lula impôs sigilo de 100 anos:
Casa Civil
- Agenda de Janja no Alvorada e no Planalto
- Declaração de conflito de interesse do ministro Alexandre Silveira
- Conteúdo de e-mails de ex-servidores
Exército
- Lista dos integrantes alocados no Batalhão de Guarda Presidencial no dia 8 de janeiro
- Ficha militar de Mauro Cid, além do histórico completo de punições e sanções disciplinares do ex-ajudante de Bolsonaro
PRF
- Processo de aposentadoria do ex-diretor Silvinei Vasques
Itamaraty
- Comunicações diplomáticas que citem o ex-jogador de futebol Robson de Souza, o Robinho
- Telegramas que citem Thiago Brennand, que responde por estupro, tortura e sequestro contra uma dezena de mulheres
Ministério da Educação
- Processos disciplinares contra servidores
Funai
- Informações relativas a disputa de territórios indígenas
- Acesso a processos do Sistema Eletrônico de Informações (SEI)
Logo no início da atual gestão petista, o presidente Lula editou um despacho dando prazo de 30 dias para a CGU rever os sigilos impostos pelo governo Bolsonaro.
“Tendo em vista a identificação, pela equipe de transição, de diversas decisões baseadas em fundamentos equivocados acerca de proteção de dados pessoais, de segurança nacional e do Presidente da República e de seus familiares e de proteção das atividades de inteligência, que desrespeitaram o direito de acesso à informação, banalizaram o sigilo no Brasil e caracterizam claro retrocesso à política de transparência pública até então implementada, determino a adoção de providências pelo ministro de Estado da Controladoria-Geral da União, no prazo de 30 dias, para revisão de atos que impuseram sigilo indevido a documentos de acesso público”, diz o despacho.
No total, foram revistos 252 casos de sigilo aplicados indevidamente, segundo números da própria Controladoria-Geral da União. Além disso, em maio, Lula editou um decreto que determina que, sempre que viável, o órgão ou entidade pública deverá realizar a ocultação, a anonimização ou a pseudonimização das informações pessoais relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, garantindo acesso ao restante do documento.
Especialistas criticam ‘uso indiscriminado’ de sigilo de 100 anos
Diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji critica o uso indiscriminado e em desacordo com o interesse público do sigilo de 100 anos previsto na legislação brasileira. “A formalização, por meio do Decreto 11.257/2023 e dos enunciados, do entendimento de que esse sigilo não é de aplicação automática e nem deve depender do humor da pessoa que decide sobre a concessão de acesso, foi um passo muito importante. A questão agora é introjetar essa interpretação em todo o governo federal, fazer isso funcionar de fato – algo que caminha a passos lentos”, afirma.
De uma forma geral, Atoji explica que o governo tem avançado em questões de transparência, mas pondera que os resultados ainda são tímidos. “Os índices de negativas ou concessão parcial de acesso a pedidos, de acordo com dados da CGU, continuaram estáveis, por exemplo. Ainda há alguns problemas de qualidade de bases de dados sobre execução orçamentária no Portal da Transparência. Ou seja, há avanços, mas não tão estrondosos quanto o discurso de campanha e de início de governo vendiam.”
Para o jornalista e pesquisador Luiz Fernando Toledo, criador do Datafixers.org, ainda é preciso avanços nas transparência dos dados. “Ainda falta convencer áreas mais resistentes da burocracia sobre as vantagens de abrir seus dados, enfrentar os dilemas com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e melhorar muito os acervos digitais e a tecnologia para tarjamento de informações sensíveis”, avalia.