Há mais de 15 anos, a atriz Janaina Leite comprou em um sebo uma edição de Teorema, romance do poeta, escritor e diretor italiano Pier Paolo Pasolini, escrito durante o processo de filmagem da produção homônima de 1968 e publicado após o lançamento da película. Na mesma época, ela assistiu diversas vezes à montagem de Pasolini – A Segunda Morte de Pedro e Paulo, do dramaturgo e diretor Zeno Wilde (1947-1998). Mesmo sem nunca ter visto nenhum trabalho do cineasta até então, a atriz ficou encantada com o universo do polêmico artista. “Assisti ao filme alguns anos depois, mas minha paixão continuou sendo o livro”, conta Janaina, que sempre se perguntava se aquele Teorema “dava teatro”.
E a conclusão é que sim. Em 2014, a atriz levou a obra de Pasolini para ser objeto de estudo em seu núcleo de pesquisa no Grupo XIX de Teatro e, posteriormente, “convenceu” o diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi, e o dramaturgo Alexandre Dal Farra, seu marido, a transporem para a linguagem teatral a história dessa tradicional família burguesa que tem a vida desestruturada com a chegada de um estrangeiro. “Lá atrás o que me atraiu foi a fábula transgressora de um visitante que perturba completamente a ordem estabelecida”, comenta Janaina. E a prova disso é Teorema 21, que estreia nesta sexta-feira, 22, na sede da companhia na Vila Maria Zélia, na zona leste de São Paulo.
Mas o mundo não é mais o mesmo daquele fim dos anos 1960 retratado pelo intelectual marxista. Muros caíram, ideologias ganharam novos contornos, então, a proposta foi fazer uma releitura da obra de Pasolini, situando a ação no presente (por isso o complemento 21), ou, como define Lubi, em um “pós-capitalismo com o capitalismo”. “A dinâmica do XIX é olhar para o mundo em que estamos vivendo”, diz o diretor. Assim, as reações radicais de cada membro desse núcleo familiar, composto por pai, mãe, um casal de filhos e empregada, causadas pela convivência com o hóspede – no filme interpretado pelo ator inglês Terence Stamp e na peça, por Rodolfo Amorim – têm agora uma perspectiva mais cínica.
Mesmo a figura da empregada, que, como representante da classe trabalhadora, virava uma santa no olhar de Pasolini, não escapa dessa interpretação da realidade atual. “Lá ela tinha uma função redentora. Na nossa versão, também vem dela um certo lastro de humanidade, mas não há a redenção”, observa Janaína, que faz a personagem, chamada Emília.
Se no trabalho original o sexo era o agente provocador das mudanças de atitude dos membros daquela burguesia alienada, na releitura do Grupo XIX, a violência ganha destaque, em uma aproximação com o último filme do cineasta, Saló ou Os 120 Dias de Sodoma (1975), lançado após seu assassinato, que completou 40 anos em novembro. “Veio uma vontade de repensar o Teorema pelo olhar do fascismo do consumo, do Saló, desse mundo já totalmente sem espiritualidade, sem metafísica”, comenta Dal Farra. “Era uma coisa que Pasolini temia e anteviu que isso aconteceria na Itália. E essa mercantilização de tudo, mais ou menos, está acontecendo aqui.”
Esta é a quarta parceria entre Lubi e o dramaturgo, que faz parte do grupo Tablado de Arruar e ganhou o Prêmio Shell de melhor autor em 2012, com Mateus, 10. Dal Farra admite que Teorema não era um dos filmes que mais gostava do diretor italiano, mas a leitura do livro “ressignificou” para ele a produção cinematográfica. E também foi um desafio lidar com o conteúdo alegórico do trabalho do artista, algo que ele diz “sempre querer fugir” em sua escrita. Depois de ver o ensaio da primeira versão da peça, ele não se deu por satisfeito e reescreveu o texto.
Ajudou a colocar as ideias nos eixos a escolha do local da encenação: uma escola abandonada na vila onde fica a sede da companhia, nunca antes utilizada pelo grupo. Nesse ambiente em ruínas, tomado pela vegetação, Lubi coloca a plateia em cadeiras giratórias dispostas no centro da encenação para que o público se torne testemunha do mal-estar vivenciado por essa família. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.