Variedades

Guri explora a musicalidade dos países vizinhos em segundo disco

Alexandre Assis Brasil quer se mudar para o Uruguai. Não literalmente – por enquanto, é bom deixar claro. A ideia, contudo, não lhe parece tão ruim de tempos em tempos. Já passou a virada de ano no país vizinho na desforra. Queria fugir do caos.

Há seis anos, Guri, apelido do músico recebido nos tempos em que integrou a ótima banda independente gaúcha Pública, vive em São Paulo. Para o rapaz que até os 16 anos morou no “mato”, em Santana do Livramento, cidade fronteiriça entre Brasil e a terra presidida por José Mujica até 2015, a capital paulista pode ser sufocante.

Vou me Mudar pro Uruguai é um dos singles de Ressaca, segundo álbum da carreira solo do promissor guitarrista, que somente há pouco mais de dois anos, quando colocou no mundo a estreia Quando Calou-Se a Multidão, enveredou pela ideia de compor canções, versos e estrofes e a cantá-las.

Aos 31 anos, a composição de uma música, do começo ao fim, ainda é uma experiência nova para Guri. “Sempre ajudei com o lado instrumental das músicas”, explica o músico sobre a época em que atuou com o Pública. “Fazia harmonia. Dava sugestão de melodia. Mas nunca tinha feito nada com letras.” O primeiro disco nasceu de uma convulsão criativa, noites insones com a guitarra deitada ao seu lado na cama e dias amanhecidos antes do fechar dos olhos. “Foi tudo em um período muito curto”, recorda Guri.

Ressaca, por sua vez, é fruto de um trabalho mais artesanal de criação. Ergue-se de um desejo do artista de se reencontrar artisticamente com suas raízes musicais, a proximidade com o país vizinho e, principalmente, esparramar saudades pelos versos. “Desde o lançamento do primeiro disco, pensava em uma mudança de melodia, rítmica, mesmo quando ainda estava tocando as canções de Quando Calou-Se a Multidão.”

Lançado nesta quarta-feira, 10, pelo edital Natura Musical, Ressaca resgata, logo na primeira audição, essa proximidade com o restante da América Latina do pequeno país espremido entre gigantes como Brasil e Argentina. “Cansei da chuva, cansei do ar”, canta ele na dita canção, na qual promete “traçar um só caminho que vai beirando o mar” até o Uruguai.

O gatilho se deu com a chegada de outro gaúcho a São Paulo. Gabriel Guedes, guitarrista que se destacou no cenário nacional com a banda instrumental Pata de Elefante. Guedes foi morar com Guri e outros dois amigos e trouxe consigo o gosto pela cumbia peruana. Guri desconhecia o gênero, chamado de chicha, cujas batidas ainda são dançantes, mas as repetições harmônicas acabam por hipnotizar o ouvinte nesse mantra andino. A chicha, em flerte ou de forma escancarada, espalha-se pelas 9 canções de Ressaca. A hipnose, contudo, ganha os ruídos das guitarras gilmournianas cheias de distorções e fuzz que são a assinatura de Guri desde os tempos de Porto Alegre.

Em janeiro deste ano, Guri, Guedes, Guilherme Almeida (baixo), Thiago Guerra (bateria) e Paulo Kishimoto (teclado e percussão) passaram uma semana em Itupeva. Em um sítio, internaram-se em Ressaca. Grande parte do disco já estava elaborada e, lá, gravaram as canções. É uma versão quase literal da metafórica canção de fuga Vou Me Mudar Pro Uruguai. Em São Paulo, seria difícil reunir todos os integrantes da banda para as sessões de gravação e ensaios. Longe de tudo, no meio do mato, Ressaca nasceu. “Os últimos discos que havia gravado tinha sido em estúdios”, comenta Guri. “Era a hora de voltar ao sítio.”

“Ritmicamente, esse disco tem acentos latinos”, ele continua. “Reuni ali essas coisas com o rock, sempre presente na minha música. Trouxe esses elementos latinos para melodias mais abrasileiradas. Trago bolero e tango, mas também canções dançantes.” As duas faixas lançadas antes da chegada de Ressaca, Vou me Mudar Pro Uruguai e Casco são também aquelas que mais pegam o ouvinte para dançar.

Casco, por sua vez, é a canção que traz a outra referência conceitual para que Ressaca tomasse forma. O mar bravo, sua imensidão diante da insignificância humana, dá nome direto ao trabalho de Guri. “Só fui me aproximar do mar, quando me mudei para São Paulo”, conta o músico. Ele tinha 24 anos e experimentava um desencanto com a guitarra na época, ocasionado pela saída do Pública. Após fazer as pazes com o instrumento, Guri passou a se tornar um músico requisitado para integrar bandas de nomes como Otto, Junio Barreto e Lirinha (este último assina uma parceria na música do novo disco chamada Geada). “É a turma de Pernambuco”, ele brinca.

Viagens com frequência ao Nordeste o colocaram mais em contato com as águas. “As letras acabam falando mais sobre isso”, ele analisa. Casco nasceu em uma temporada em Ilhabela, no litoral de São Paulo. “Quem tanto olha para o mar, tem saudade, que eu sei”, canta a canção. “Gosto de falar sobre saudade”, explica Guri. “Saudade de diferentes coisas. Não só de um amor. De coisas que se foram. Penso na saudade do meu pai. Não é algo tão dolorido assim, o tempo ameniza essas saudades, mas, às vezes, passo por lugares e lembro dele. Ele curtiria vir aqui, penso.” O pai de Guri morreu quando ele tinha 15 anos, pouco antes da família Assis Brasil deixar Santana do Livramento e se mudar para Porto Alegre. “A saudade é ruim nos primeiros meses e anos. Depois, vai aliviando.”

Saudade, por fim, é a grande força motriz de Ressaca. Até mesmo a compreensão da morte está ali, caso da roqueira Rastro de Bala, criada após a partida de David Bowie, em janeiro. Tudo se vai. Fica-se o rastro. Já Andorinha, um tango rock, as palavras de Guri são endereçadas ao amor que se encontra distante. Até o outro significado da ressaca, os sintomas após uma noite de bebedeira, pode ser usado ali. Bebe-se para fugir da realidade dura, da saudade que teima em não sair. É impossível fugir da melancolia, mas pode-se dançar com ela.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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