Aprender línguas era um sonho de criança do estudante Bruno Pinto da Silva, de 26 anos, aluno de mestrado em Linguística da Universidade de São Paulo (USP). O que ele não imaginava é que seu interesse por idiomas falados em lugares mais isolados do mundo o ajudaria a absolver um haitiano preso e acusado de feminicídio, em São Paulo. Desde a prisão, o imigrante tentava dar sua versão, mas ninguém o entendia. Silva conseguiu reproduzir fielmente o que acusado disse sobre os fatos, o que, aliado a outras provas, convenceu o júri a absolvê-lo.
O julgamento ocorreu em janeiro deste ano, no Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo. O haitiano, que terá a identidade preservada, morava no Brasil havia poucos meses, quando aconteceu o crime. A mulher foi morta a facadas. Acusado por um parente haitiano fluente em português, o estrangeiro foi preso e levado a júri popular. Durante a instrução do processo, ele não conseguiu apresentar sua versão porque só conseguia se expressar em crioulo, a língua popular do Haiti, país cujo idioma oficial é o francês.
O defensor público nomeado para o caso invocou um pacto da Convenção Americana de Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário, que prevê o direito do estrangeiro acusado de um delito à presença de um tradutor ou intérprete, caso não fale a língua local. Foi aí que Silva, por ser um dos raros especialistas na língua-mãe do Haiti, entrou em cena. "Trabalho com o idioma desde 2014, quando fazia um trabalho voluntário de acolhimento aos haitianos, em Jundiaí, no interior, onde moro até hoje. De tanto ensinar o português para eles, aprendi o crioulo", disse.
O mestrando era cadastrado como perito e intérprete em uma plataforma de auxiliares da Justiça. "Meu cadastro havia expirado, mas me procuraram pelo Google acadêmico. Eu só conheci o acusado no dia do julgamento e não conversei diretamente com ele, apenas com seu defensor. Como intérprete, tenho de fazer o meu trabalho com total imparcialidade", disse. Silva expôs de forma clara, em português, para o juiz e os jurados as palavras que ouviu do acusado.
Ele acredita que sua tradução serviu para esclarecer fatos e lançar dúvidas sobre a versão inicial do feminicídio. "O resultado até poderia ter sido o oposto. O que acredito é que, pela primeira vez, o relato dele foi bem compreendido e estava compatível com as evidências, o que levou à absolvição", disse. As suspeitas pelo crime acabaram recaindo sobre o parente que acusou o haitiano. A investigação do caso foi reaberta pela polícia, por determinação da Justiça.
Silva explica que o Haiti, com 11,5 milhões de habitantes, já foi descrito como um país onde existe a diglossia, situação de bilinguismo, em que o francês é a língua oficial, símbolo de status, e o crioulo, a língua popular. "Uma minoria de 7% no máximo fala o francês, e todo o resto se expressa no crioulo. Muitos sequer conseguem falar o francês, e quem fala francês não consegue entender o crioulo", disse.
Silva aprendeu inglês ainda na infância e, estudando sozinho, dominou também o espanhol. Depois, passou a falar italiano e francês, interessando-se pelo crioulo haitiano. Testemunha de Jeová, desde adolescente passou a realizar trabalhos voluntários na periferia de Jundiaí – "é onde eu moro" – e de acolhida a imigrantes. Após dominar a língua do país caribenho, ele criou o blog Aprenda o Crioulo Haitiano. "Não foi só um estudo acadêmico. Foi desde acompanhar haitianos em hospitais, como intérprete voluntário, até ajudar a resolver problemas de vazamento de água."
Durante a graduação em tradução e interpretação na Universidade Nove de Julho (Uninove), na capital, ele foi se aprofundar em linguística na Universidade de Campinas (Unicamp). Em 2019, foi aprovado no curso de doutorado em Linguística da USP. Em 2021, ele foi escolhido pelo Centro de Estudos Brasileiros da América Latina para desenvolver apostilas para treinar intérpretes para o crioulo, tanto comunitários como forenses. O material está prestes a ser lançado.
O episódio vivenciado por Silva remete ao filme Amistad (1997), dirigido por Steven Spielberg, em que um intérprete tem papel decisivo no destino de pessoas negras durante o período de escravidão nos EUA. Em 1839, o grupo aprisionado em um navio se revolta, mata a tripulação e acaba interceptado pelos americanos, mas os tribunais dos EUA não entendem o que eles falam. Até que os advogados conseguem um intérprete da língua deles.
Em 1978, no Brasil, um homem negro foi preso, acusado de golpear um fazendeiro com uma foice em Salto de Pirapora. Na delegacia, ninguém entendia o dialeto do suspeito. O episódio resultou na descoberta do Cafundó, remanescente de quilombo que preservou uma língua própria, a cupópia, e no tombamento do Cafundó como território quilombola.