Era terça-feira, 5 de outubro de 1976, e o projeto Seis e Meia – série de shows criada pelo produtor cultural Albino Pinheiro (1934-1999), com grandes artistas se apresentando a preços populares, bem na hora do rush – vivia seu período de apogeu. No começo da noite, Henrique Leal Cazes, então com 17 anos, deixou o teatro João Caetano, onde acabara de assistir ao cavaquinista Waldir Azevedo (1923-1980) e à cantora Carmen Costa (1920-2007), satisfeito, mas não totalmente.
Dois dias depois, Cazes retornou ao local para ver novamente aquele show, mas desta vez, digamos, com “outro olhar”. Com um binóculo, esmiuçou a técnica da mão direita, a maneira de emitir o som e a palhetada de Waldir, o maior responsável pela popularização do cavaquinho como instrumento solista.
Mesmo com personalidade e estilo próprios, o cavaquinista de 55 anos tem até hoje o autor de sucessos como Brasileirinho, Delicado e Pedacinhos do Céu como uma referência. Não à toa, uma composição de Waldir, Brincando com o Cavaquinho, dá nome ao DVD que Cazes lança no próximo mês para comemorar 25 anos de sua carreira como solista.
“O Waldir metia a mão pra valer, a maneira de tirar o som beirava a violência, embora o som que saísse não fosse bruto. Sempre o admirei, mas sabia que meu caminho tinha de ser diferente”, diz Cazes. “Outro dia, encontrei um amigo com quem cursei a escola técnica federal em química. Naquela época, ele estudava violão clássico. Lembramos que eu, aos 15 anos, disse para ele: Queria fazer um negócio com o choro como o Piazzolla fez com o tango. Eu não sabia o que era direito, mas de alguma maneira a mudança já estava na minha cabeça”, completa.
Como o DVD repassa momentos importantes da trajetória do cavaquinista, Waldir, que fora homenageado por Cazes nos discos Tocando Waldir Azevedo (1990) e Relendo Waldir Azevedo (1997), não podia ficar de fora. Não apenas Brincando com o Cavaquinho, mas também temas como Eterna Melodia, Carioquinha e Delicado ganharam novas gravações.
Solo, em duo (com Marcello Gonçalves, no violão de 7 cordas) ou em quarteto (com Gonçalves, o irmão Beto Cazes, na percussão, e Omar Cavalheiro, no contrabaixo acústico), Cazes também repassa outros compositores a quem ele já tinha dedicado discos anteriormente. Nesta lista, destaque para Pixinguinha (Paciente, Passatempo, Rosa e Os Oito Batutas) e Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (Puxa-Puxa, Duas Contas e Lamentos do Morro), homenageados nos álbuns Pixinguinha de Bolso (2000) e Vamos Acabar com o Baile (2007), ambos com Gonçalves.
“O DVD tem também uma função paradidática. Os fanáticos por cavaquinho vão poder ver a execução de uma maneira completa, fiel. Muitos ouvem os discos e acham que ali tem truque de estúdio”, diz Cazes, que contou com o diretor de fotografia Carlos Mendes Pereira e com o técnico de som Marcelo Sabóia para chegar ao resultado que queria no DVD. O trabalho, que marcou a última gravação no histórico estúdio Musidisc, no Rio, em 2012, mostra apenas os músicos, dispensando plateia e convidados, algo costumeiro em DVDs comemorativos.
O repertório, que também tem Língua de Preto (Honorino Lopes), Vocês me Deixam Ali e Seguem no Carro (Hermeto Pascoal) e Blackbird (Lennon e McCartney, relembrando a série Beatles n Choro, de 2004), traz composições de Cazes, como Real Grandeza e a inédita Viravoltando, além de Estudo nº 7 e Estudo nº 9, ambos de autoria do compositor.
Antes de embarcar na carreira de solista, Henrique Cazes atuou em dois grupos fundamentais para a sua formação. O Conjunto Coisas Nossas, com interessante pesquisa sobre a música popular brasileira, e a Camerata Carioca, em que ele teve dois grandes mestres: o bandolinista Joel Nascimento, que lhe passou muito da técnica e da sonoridade em instrumentos de cordas, e o pianista e maestro Radamés Gnattali (1906-1988), com o qual Cazes aprendeu muito sobre arranjos.
“Os dois foram muito importantes para mim. Eu já tinha uma certa noção de técnica, mas não tinha leitura. Quando pintou o convite para entrar na Camerata, tive que aprender a ler música em pouquíssimo tempo antes de gravar, com 21 anos apenas, o disco Vivaldi & Pixinguinha”, relembra Cazes.
Tempos depois, o cavaquinista travou contato com outro mentor, mas, desta vez, no campo da produção de discos: o gaitista Rildo Hora. “Aprendi muito de estúdio com o Rildo, que me convidou para ser seu assistente nos anos 1980, gravando muita gente do samba”, conta o cavaquinista, que, atuando em diversas funções, participou de cerca de 140 discos.
Além das facetas de instrumentista, compositor, produtor e arranjador, Cazes se tornou uma das figuras mais importantes do País para a construção de uma literatura do cavaquinho, expandindo as possibilidades do instrumento para além de seus “habitats naturais”, o choro e o samba.
Autor do livro Choro: Do Quintal ao Municipal (Editora 34, 1998) e do método mais usado por estudantes no aprendizado do instrumento, Escola Moderna do Cavaquinho, lançado em 1988, o cavaquinista é uma das principais figuras por trás do primeiro bacharelado em cavaquinho no País. Iniciado na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2013, o curso vai formar os primeiros alunos no fim de 2016.
“O cavaquinho viveu no obscurantismo por muitos anos, mas o instrumento está evoluindo muito. Quando eu comecei a tocar, você chegava numa roda e tinham cinco cavaquinhos, mas ninguém sabia ler, fazer arranjos, hoje é diferente”, diz Cazes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.