Aos quatro anos de idade, o filho da historiadora Luciana Brito, de 40 anos, já estava passando pela terceira escola infantil. O menino tinha frequentado instituições “excelentes”, mas que ainda careciam de uma ênfase na cultura afro-brasileira e indígena, algo que a mãe sentia falta. No ano passado, ela conheceu o projeto pedagógico da Escolinha Maria Felipa, em Salvador, na Bahia, que nasceu para atender essa demanda – dela e de outros pais da cidade.
“É comum ver nas crianças estranhamento com o cabelo, por exemplo, noções de belo e feio. Meu filho tem total conforto com o dele e acha qualquer tipo bonito. Eu, como pessoa negra, aprendi que meu cabelo tinha problema, meu corpo, meu nariz, minha cor. Meu filho, na formação da subjetividade dele, já entendeu que é belo, inteligente, um menino que dá e recebe afeto”, conta Luciana.
O ensino oferecido na escola particular Maria Felipa resgata os grandes feitos dos antepassados negros para que as crianças tenham prazer de ser descendentes deles. “Queremos mostrar que os antepassados vieram de grandes impérios, são filósofos, rainhas, reis, que o conhecimento ameríndio é avançado, não é menor que a ciência moderna”, diz Ian Cavalcante, sócio-diretor da escola.
As atividades, segundo ele, valorizam o conhecimento além dos eurocêntricos, mas sem abandoná-los. “A ideia é valorizar tudo.” A apresentação dos números para as crianças, por exemplo, é feita mostrando a foto de uma tábua de contar egípcia (ábaco egípcio) e contando a história por trás dela. “Isso fortalece a autoestima do meu filho e faz diferença para ele como criança e, sem dúvida, quando for adulto”, diz Luciana, que afirma também repassar esses valores para o menino em casa. O currículo da escola bilíngue inclui capoeira ensinada em português, danças latinas e circo em espanhol, além de parte do conteúdo em inglês.
A Maria Felipa ficou conhecida há pouco mais de duas semanas quando uma publicação nas redes sociais viralizou. Na ocasião, uma mãe que estava em busca de uma escola questionou sobre a presença de um professor transexual na instituição. Após sugerir que o número de matrículas havia diminuído devido a isso, a escola respondeu: “Quem acha que uma pessoa trans, apenas por ser trans, não pode educar seu filho não merece a nossa escola”.
Cavalcante conta que foi a primeira vez que uma situação como essa ocorreu e afirma que, quem faz parte da comunidade da escola, a escolheu justamente por seu posicionamento. Mas a diversidade de gênero não é a única questão defendida, visto que trabalha em prol do respeito étnico-racial.
Primeiros passos
A escola de educação infantil nasceu de uma preocupação de Cavalcante e da mulher dele, que também é professora. “Estávamos em um processo longo de adoção, em que pedimos uma menina preta de três a seis anos, e começamos a nos preocupar em qual escola colocá-la”, conta. Professor bilíngue de uma escola particular de classe média alta em Salvador, ele diz que descartou todas as instituições desse nível por terem um “ensino muito eurocêntrico, de valores de competição, muito caras e com poucas crianças negras”. O casal cogitou colocar a filha numa escola pública, mas pensou que a vaga poderia ser ocupada por outra cuja família teria necessidades maiores que as dele.
Brincando, eles pensaram em criar a própria escola, mas depois o assunto ficou sério quando começaram a discutir sobre pedagogia histórico-crítica. “Tinha de ser uma escola com princípios que buscassem uma sociedade mais equânime e priorizasse as matrizes ancestrais, africanas e ameríndias”, relata Cavalcante. No final de 2017, eles conversaram com profissionais da educação, pessoas da militância negra e ameríndia, acadêmicos e elaboraram o projeto pedagógico da futura escola. No ano seguinte, fizeram eventos para apresentar a proposta e há dois meses iniciaram o primeiro ano letivo.
Atualmente, a instituição atende 33 crianças, de dois a cinco anos de idade. “A construção da autoestima, da autoimagem no mundo, ocorre nessa faixa etária e é essencial que as crianças não se sintam deslocadas ou não carreguem preconceito e discriminação”, diz o diretor. A escola tem uma campanha de arrecadação online a fim de conceder dez bolsas para crianças em vulnerabilidade social.
Tecidos africanos na matemática
Em São Paulo, a professora Conceição França atinge duas questões com a mesma proposta: ensinar cultura africana e melhorar o desempenho dos alunos em matemática, disciplina que costuma ter notas baixas em avaliações.
Ela leciona na EMEF Antonio Duarte de Almeida, localizada na periferia na zona leste da cidade. É nessas regiões afastadas, onde ela trabalha há 30 anos, que se encontra grande parte da população negra. Em suas pesquisas acadêmicas, ela abordou a autoimagem da criança negra e percebeu que, na maioria dos casos, é negativa.
“Sempre trabalhei a questão étnico-racial, por ser negra, por entender as questões de racismo e preconceito e por acreditar que a escola é um lugar onde a gente pode positivar a identidade dessas crianças”, diz Conceição. Por isso, já há alguns anos, ela trabalha a cultura afro-brasileira com as turmas, fazendo valer a Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Uma das abordagens que ela adota é o uso de tecidos africanos para ensinar simetria e geometria.
Ela utiliza um material específico, o pano da terra, feito por artesãos de Guiné-Bissau e Cabo Verde, de onde a professora os trouxe. Os tecidos têm padrões geométricos que são transpostos pelas crianças para o papel quadriculado. Mas, antes de chegar a isso, ela faz a interdisciplinaridade, ou seja, mostra onde está Cabo Verde, qual a cultura do local, o que é feito por lá.
Isso permite trabalhar a cultura africana em história, geografia, português, literatura e informática. “Quando se vai trabalhar história e cultura africana, é muito importante que seja amplo, que a criança tenha uma visão geral.” Ao chegar na matemática, a bagagem de conhecimento já está cheia.
“O resultado é sempre muito bom, percebo isso nas falas das crianças, na melhora do comportamento, nas relações entre elas. As não negras passam a respeitar mais as negras e estas se sentem mais valorizadas, porque sabem que seus antepassados tinham muito conhecimento”, afirma Conceição.
Com a implementação da afro-étnico-matemática, ela observou que, nas avaliações, a escola melhorou de forma significativa o aprendizado da disciplina. “A gente trabalha esse conhecimento na prática, ela vivencia, é o concreto: olha o tecido, desenha, constrói outro desenho. Eles aprendem na prática.”