"Consultinha pública para fins jornalísticos: alguém aqui conheceu uma casa de rock no Bexiga chamada Persona?" A pergunta feita pelo repórter em sua página no Facebook provoca um rápido fluxo de respostas. As memórias chegam turvas, ou pela condição toxicológica do cérebro no momento em que foram captadas ou pela ação do tempo, já que quase inexiste um material fotográfico que confirme que não: o Persona não é uma criação dos andejos roqueiros da Rua 13 de Maio, não é um delírio coletivo dos atores experimentais dos anos 80 e não é uma lenda contada pelos jogadores de xadrez reais que moviam suas primeiras peças em uma mesinha colocada à frente da casa às 6 h da manhã, quando o sol nascia e os últimos músicos retiravam seus amplificadores.
O Persona, chamado por aqueles que sabem de uma parte da história como "o último inferninho de São Paulo", existiu entre 1979 e 1995 em dois endereços da Rua 13 de Maio. Só não pense na Rua 13 de Maio de hoje. Por aqueles tempos, o Bexiga era a noite propriamente dita. A vida fervia em cantos como o orgulhosamente batizado Teatro 13 de Maio, no qual os Secos & Molhados lançaram seu primeiro disco, em 1973, e, já na subida do primeiro quarteirão a partir da Rua Santo Antônio, ela se tornava a Broadway paulistana dos ensandecidos, a Bourbon Street garoenta dos bares, cafés e casas de rock coladas umas às outras com uma música fervente. O primeiro Persona chegou para ocupar parte do extinto Teatro 13 de Maio e inspirar o criador do futuro Café Piu-Piu antes de atravessar a rua e se mudar para uma construção maior, de três andares, com um histórico já bem rock and roll.
A artista plástica Sulamita Mareines havia aberto um bar naquele endereço no final dos anos 70, o Espaço Infinito, com uma decoração feita com muitos espelhos. A investida durou pouco. Seis meses depois, ela fechou as portas e os proprietários de uma sauna gay, incentivados pelo ponto e, naturalmente, pelos espelhos, usaram o espaço para receberem clientes até também desistirem do negócio e partirem. Era a vez do Persona. "Quando chegamos, estava bem detonado, mas os espelhos continuavam lá", conta Carmen Campadello, viúva do mentor de tudo, Roberto Campadello. Ao lado do italiano, uma das mentes mais brilhantes que aquelas noites levaram, Carmen testemunhava o novo passo de um homem que já havia feito uma tradução personalizada do I Ching; separado o mundo espiritual do material com a Casa Dourada, instalada na Bienal de São Paulo de 1973; criado o mimético Jogo das Mutações, no qual as imagens de duas pessoas colocadas frente a frente se fundiam por meio de espelhos que as faziam ver-se uma na outra; e produzido um LP de dez polegadas com temas tocados pela banda Tutti Frutti sem Rita Lee, um dos mais raros e menos expostos de todos os LPs psicodélicos da história. Isso tudo antes que o Persona mudasse de endereço e seguisse sendo um lugar de estranhamento, delírio e rock and roll.
Um pulo de 42 anos e caímos no selo musical de Mateus Mondini, o Discos Nada, uma subdivisão voltada ao resgate da psicodelia brasileira mais obscura, pertencente ao Nada Nada Discos. Mateus conta que, depois de se impressionar com a saga de Roberto e sua linha de investigações sobre a psique humana, decidiu relançar o LP Persona de forma luxuosa. Antes de produzir o álbum de dez polegadas, em 1975, Roberto fez uma tiragem de mil cópias de uma fita cassete com o mesmo repertório. Agora, será a primeira vez em que o disco surge em 12 polegadas, o tamanho de um LP normal. O áudio foi remasterizado na Europa a partir das masters originais e o material traz duas faixas bônus. Na caixa estão ainda uma réplica do pôster original, itens como um espelho e velas com as instruções para se praticar o Jogo das Mutações e um livreto de 24 páginas com fotos e texto biográfico. O preço de uma das 500 cópias do box completo, que também será lançado em países da Europa pelo selo Black Sweat Records, é de R$ 430. Só o vinil sai por R$ 140, tudo negociado pelo site nadanadadiscos.com.
A história do álbum, como tudo o que se passou nos porões da São Paulo dos anos 70, começa com um esbarrão. Um ano depois de fazer sucesso com sua envidraçada Casa Dourada na Bienal, Roberto Campadello foi convidado a levar a instalação para o Sesc Pompeia, território de muitos roqueiros e do Tutti Frutti, banda do guitarrista Luiz Carlini, ainda um dos maiores do País, do baixista Lee Marcucci e do baterista Franklin Paolillo.
Eles ainda não haviam gravado com Rita o clássico Fruto Proibido, de Ovelha Negra e Esse Tal de Rock and Roll, quando Carlini entrou no Sesc e viu Roberto dormindo dentro da Casa Dourada. Se aproximou, puxou conversa e, dias depois, recebeu o convite para gravar um disco com temas, a maioria instrumentais, para serem escutados enquanto se praticava o Jogo das Mutações. "Eu estava muito envolvido com a cultura hippie e a cena underground vivia um momento bem criativo. Nesse embalo, comecei a misturar sons: linhas melódicas, ruídos, câmara de eco, guitarra, despertador, violão, falas, percussão… Cheguei até a quebrar um vidro para criar um clima", contou o roqueiro ao jornalista Bento Araújo, em um texto de apresentação do projeto. O som que se ouve em Persona, como diz Mateus, do Discos Nada, é o inverso do rock stoniano do Tutti Frutti. Uma loucura psicodélica e sensorial. "Ele foi composto e gravado para ser trilha do Jogo das Mutações. É parte de um todo", analisa o pesquisador.
Mas o todo mesmo só terminaria do outro lado da Rua 13 de Maio, quando Roberto e Carmen ocupassem os três andares do novo Persona para viverem a fase final da noite que se estenderia até 1995. Ao fechar a casa por entender que um ciclo havia terminado, Roberto seguiu com a família para a cidade de Visconde de Mauá, no Rio, onde viveu até 2014, quando morreu, aos 73 anos, por problemas cardíacos.
Ao lerem o post do repórter em busca das lembranças sobreviventes de um lugar onde a expressão era tão livre quanto as drogas e a pinga com mel oferecida na porta (ok, o repórter sabe disso tudo porque também tocou no Persona com uma banda de rock, a Rocket 88), as mensagens começaram a chegar. Elas trazem memórias de personagens que saíam de outra dimensão por volta das 2 h, como o espetacular cantor folk Marcos Lobo e sua versão eterna de My Sweet Lord, um gaitista sem nome que chegava para dar canja em qualquer microfone desguarnecido por dois segundos e um bailarino careca de pouca roupa e vergonha que subia ao palco sem pedir licença para dançar ao lado de qualquer cantor enquanto tocava suas castanholas. Luiz Waack: "Toquei lá com Itamar Assumpção e Paulo Lepetit, muito legal". Eliana Severo: "Nunca me esqueci… A primeira vez entrei porque lá da rua ouvi alguém tocar como se fosse Thelonious Monk". Ricardo Vignini: "Enfrentei tiroteios na porta, tocava até as 4 h e depois pegava o busão pra casa". Denise Zuliani: "Também ia, mas a memória tá meio nebulosa depois das doses de pinga com mel…".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>