Pouco antes do início da pandemia da covid, a escritora chilena Isabel Allende sofreu uma das maiores perdas de sua vida: a morte de sua mãe. Para enfrentar o baque, ela recorreu à literatura e escreveu Violeta, que chega agora ao Brasil.
A trama acompanha os 100 anos de Panchita, mulher nascida em 1920, durante a gripe espanhola, e que morre em 2020, quando o coronavírus se espalhava pelo mundo. Nesse largo período, Isabel parte da narrativa que a avó conta para o neto Camilo e aproveita para iluminar temas distintos, desde feminismo, violações contra os direitos humanos e homossexualidade até aquecimento global e casos amorosos seguidos de infidelidade.
"Depois que minha mãe morreu, muitas pessoas que conheciam o relacionamento profundo que tínhamos sugeriram que eu escrevesse sobre ela, mas não pude fazê-lo, talvez porque estava ainda emocionalmente muito próxima a ela", disse Isabel ao <b>Estadão</b>, em entrevista por e-mail."Preferi escrever um romance com uma personagem parecida com a minha mãe e, por meio dela, contar alguns acontecimentos relevantes do século 20."
Autora de obras traduzidas para 42 idiomas e que venderam cerca de 70 milhões de exemplares, Isabel viveu longe da mãe durante muito tempo e, para amenizar, elas se correspondiam compulsivamente. "Meu filho, que arquivou as cartas, contou cerca de 24 mil."
<b>Ao longo de sua vida, Violeta é marcada pela morte dos entes queridos. Como conciliar a velhice com as perdas inevitáveis?</b>
Quando se vive muito, como Violeta, tudo se perde no caminho. Não só os entes queridos se vão, perdem-se também as faculdades, a independência, os recursos, etc. Minha mãe permaneceu lúcida até o final de seus 98 anos, mas era praticamente uma inválida. Seu corpo falhou com ela. Violeta acaba velha, cuidada por sua fiel Etelvina, mas sua mente está intacta e isso lhe permite contar sua vida com clareza e ironia.
<b>O romance é escrito como uma carta para um ente querido. Isso permitiu que a senhora o escrevesse como um livro de memórias?</b>
Comecei a escrever o livro na terceira pessoa, mas logo percebi que Violeta poderia parecer mais humana se ela mesma contasse sua vida. Por que uma mulher que estava morrendo, aos cem anos, estaria lembrando o passado com tantos detalhes? Porque estava contando para a pessoa que mais ama no mundo, seu neto. Violeta quer que ele se lembre dela.
<b>Como foi escrever sobre perda e luto?</b>
Em todos meus livros, há perdas e dores, fazem parte da vida. Ao escrever sobre a morte de Nieves, filha da protagonista, e a imensa dor que isso causou à sua mãe, foi inevitável recorrer à memória da minha própria experiência ao perder minha filha Paula. Essa memória é muito traumática, mas posso descrevê-la porque sei que compartilho o luto com milhões de mulheres e homens que perderam seus filhos. É a dor mais antiga da humanidade.
<b>Nieves foi inspirada em uma pessoa real?</b>
Foi inspirada na minha enteada Jennifer, que morreu muito jovem por causa das drogas. Todos os três filhos do meu segundo marido, Willie, eram viciados e morreram prematuramente. Conheço muito bem essa tragédia. As drogas destroem a vida da vítima e afetam a família e todos ao seu redor.
<b>A ascensão de movimentos como o #MeToo revelou um entusiasmo tardio, mas bem-vindo, para que as mulheres jovens lutem por seus direitos?</b>
Essa nova onda de mulheres jovens lutando contra o machismo e o patriarcado é muito importante e está fazendo grandes mudanças. Não é um movimento tardio. Cada geração tem de enfrentar suas próprias lutas.
<b>Como a senhora avalia um ano do governo Joe Biden?</b>
A opinião pública não tem sido favorável a Biden. Ele assumiu um país dividido pela violência e pelo ódio, o legado fatal de Trump. Durante os anos Trump, vivemos em uma situação permanentemente explosiva. Agora, pelo menos, há um pouco mais de paz de espírito. Veremos se Biden pode cumprir seu programa nos anos restantes no cargo.
<b>E qual a sua opinião sobre a eleição para presidente do chileno Gabriel Boric?</b>
Vejo o processo chileno com esperança, curiosidade e alegria. Durante o surto social ocorrido em outubro de 2019, milhões de pessoas saíram às ruas para protestar contra um sistema social, político e econômico que criou grande desigualdade. A questão era: que país queremos? Como vamos conseguir? A constituição imposta pela ditadura de Pinochet em 1980 teve de ser alterada. As propostas para isso são muito interessantes: paridade de gênero, inclusão de todos, diversidade, respeito à natureza, enfrentamento às mudanças climáticas, distribuição mais equitativa de oportunidades e recursos, que os bens naturais fiquem com o povo e não em mãos privadas, etc. O desafio será conseguir tudo isso sem que a economia entre em colapso. Ninguém quer um desastre como o da Venezuela. Trata-se de estabelecer uma social-democracia, talvez algo semelhante à Alemanha. Claro que as forças da oposição são enormes e Boric não tem maioria no Congresso, então será muito difícil governar.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>