Autor de Os Sertões, uma das obras fundamentais da literatura brasileira, Euclides da Cunha (1866-1912) será tema de discussões a partir de quarta-feira, 10, quando começa a 17.ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, na cidade fluminense. Por ser o escritor homenageado da vez, Euclides será apresentado por meio de suas qualidades e também contradições. Afinal, se era devoto de determinismos raciais e geográficos que hoje são condenados, o escritor, ao voltar da cobertura que fez para o jornal O Estado de S. Paulo da revolta de Canudos (1896-1897), era um homem coberto de dúvidas.
“Se a literatura nunca é um reflexo imediato da vida privada, aqui ela guarda uma clara correspondência”, anotam os pesquisadores Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho, no prefácio da edição de Os Sertões lançada pela Companhia das Letras, um dos vários lançamentos referentes à obra que chegam agora às livrarias. “No caso de Euclides da Cunha, sua formação, as incertezas que viveu com relação à política, as teorias que aprendeu e adotou para si, e as experiências que acumulou pelo Brasil afora fizeram toda a diferença. Em Os Sertões, o autor estava muito presente, embora a obra fosse maior do que ele. Muito maior.”
Um dos marcos fundamentais nos estudos sobre a formação brasileira, Os Sertões foi publicado em 1902 e é a consolidação e aprimoramento da cobertura jornalística do levante de Canudos, que Euclides realizou para o Estado, a pedido de Julio Mesquita. Empoleirado no lombo de um cavalo ou comprimido no tombadilho de um navio, nada parecia ser empecilho para o escritor, que deixou a capital paulista no dia 1.º de agosto de 1897.
Outros correspondentes já acompanhavam as infrutíferas tentativas do exército republicano de derrotar os seguidores de Antônio Conselheiro, no interior da Bahia, e Euclides destacava-se como o escolhido natural para representar o jornal: colaborador havia nove anos, o escritor publicara, nos dias 14 de março e 17 de julho daquele ano, dois artigos com o título comum de A Nossa Vendeia.
No período em que cobriu o levante, Euclides passou por um verdadeiro rito de passagem: se quando deixou São Paulo estava seguro da natureza monarquista da rebelião em Canudos, o escritor (republicano convicto) foi obrigado a reformular seu julgamento, forçado pelas contingências. Diante de famílias reunidas em torno de um líder messiânico, Euclides percebeu que o movimento estava próximo de um massacre.
De fato, com o argumento de se defender a “civilização”, todas as casas do arraial foram destruídas e boa parte dos prisioneiros foi degolada. “Em Os Sertões, Euclides acusou o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da comunidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens”, escreveu o especialista Roberto Ventura em A Terra, o Homem, a Luta (Três Estrelas), que ganha nova edição. “Reconheceu, de certo modo, a omissão de sua cobertura da guerra, ao mencionar o massacre dos prisioneiros, sobre o qual antes se calara. Criticou ainda a aproximação entre Canudos e a Vendeia, que empregara em seus artigos, e descartou a ideia de uma conspiração política, apoiada por grupos monárquicos e países estrangeiros, que havia justificado o massacre.”
Um dos grandes especialistas em Euclides (tema de exposição na Biblioteca Nacional), Ventura observou que o escritor adotou a perspectiva do historiador e ensaísta, “bem próximo do naturalista e do etnólogo e muito distante do mero cronista ou jornalista, como forma de superar a possível falta de interesse pela Guerra de Canudos, encerrada havia cinco anos”.
A mudança de perspectiva também norteou a forma como o O Estado de S. Paulo passou a observar o fato, segundo a pesquisadora Lidiane Santos de Lima Pinheiro, no livro A Construção do Acontecimento Histórico (Edufba). “Entre lembranças (voluntárias ou obrigadas) e esquecimentos (parciais ou completos), o jornal saiu do discurso que defendia a destruição do arraial antirrepublicano e seguiu em direção à crítica da guerra”, anota ela. “Também foram mudadas as versões sobre a quantidade de habitantes de Canudos de 1897, sobre sua associação ao fanatismo, sobre sua ligação com o debate em torno da propriedade de terras, etc. Tais releituras, contudo, não foram aleatórias, pois, com o tempo, os trabalhos acadêmicos e outras manifestações culturais interferiram significativamente na interpretação do acontecimento.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.