Um muro de vidro separa há dois meses cerca de 90 funcionários do Hospital Premier, na zona sul de São Paulo, da pandemia da covid-19. Eles vivem uma intensa quarentena, em que o local de trabalho também virou lar e as visitas ocorrem através de uma estrutura envidraçada. Tudo para evitar a entrada do coronavírus na instituição, especializada em cuidados paliativos.
A enfermeira Laís Santos, de 28 anos, lembra do "baque" de receber a proposta de aderir ao isolamento no hospital, que vetou o fluxo diário de pessoas para preservar os pacientes, todos do grupo de risco. "Ninguém esperava, foi difícil de contar em casa, de assimilar, mas sabia que era necessário. Meu filho (Leonardo, de 12 anos) mandava mensagem de voz, dizia: Mãe, vamos ser fortes."
Nos aniversários do pai e do filho dias atrás, o parabéns foi por videochamada.
"Agora, dou mais valor às pequenas coisas, o contato físico, poder abraçar, beijar", conta. "Também tenho pensado muito nos pacientes, que somos as famílias deles agora (as visitas na área interna estão vetadas)."
O contato também ocorre pelo espaço que batizou de "vidro das lamentações", um muro envidraçado pelo qual consegue interagir com quem está do lado de fora. Ali, mesmo com o barulho do tráfego na rua, pode desabafar e se distrair por horas. "O mais importante é estar vendo os familiares e amigos, que estão bem. A gente fica em pé mesmo, mas nem liga."
Liliana Moretti, de 57 anos, também visita o muro quase diariamente. Ela sai de carro de casa, de máscara e com cuidados diversos para passar um tempinho com o marido, o cirurgião dentista Fabio Moretti, da mesma idade, que se recupera das sequelas de um AVC. "Temos dois filhos, nenhum neto. Sou aposentada e, hoje, a dedicação da minha vida é ele."
Para a aposentada, a situação se assemelha à dos seus antepassados imigrantes, que mantinham contato somente por cartas. "Ele fala que está com muita saudade de me abraçar, de me beijar, são 40 anos juntos", conta. "No início, ficou chateado, não podendo ver a família e os amigos. Mas, aos poucos, a gente foi conversando sobre a necessidade, de que lá está mais protegido do que nós."
Já a supervisora de enfermagem Taciane Catib, de 35 anos, evita receber visitas. "Quando vi meu filho mais novo, ele falou Mamãe, deixa eu entrar para eu te dar um abraço. Foi o dia mais difícil para mim. A carinha dele era de uma decepção tão grande. Pensei até que não conseguiria seguir aqui."
Taciane conta que a experiência também trouxe vivências positivas, como a proximidade com colegas de profissão. "Nunca foi tão bom chegar no trabalho, em dois minutos", brinca. "Ontem (segunda-feira), foi embora uma das enfermeiras que estava desde o começo, que contribuiu muito aqui."
<b>Adaptações</b>
O hospital sofreu mudanças para receber os novos moradores. Escritórios e leitos desocupados foram transformados em quartos, por exemplo. A cantina virou o espaço de refeições, enquanto o auditório começou a receber sessões de cinema. Exercícios no pátio e mesa de pingue-pongue também compõem a programação. "No início era engraçado, a gente fazia de luvas e álcool toda hora. Depois dos primeiros 20 dias, ficou menos rígido", conta o médico André Cerqueira Comune, de 35 anos.
O isolamento foi adotado porque os 46 pacientes são, em grande parte, acamados, idosos e têm problemas de saúde diversos. "Foi uma decisão bem agressiva, mas necessária. São pacientes bastante frágeis, com múltiplas comorbidades e que dificilmente sobreviveriam à doença", diz Comune.
O superintendente do hospital, Samir Salman, se orgulha do resultado. "Em uma cidade altamente infectada, estamos sem nenhum caso por causa do autoisolamento." Ele observa que grande parte dos hospitais não conseguiria replicar a experiência, pelo fluxo de urgência e emergência, por exemplo. A experiência está sendo registrada em textos e vídeos.
<b>Talentos são descobertos e há mais valorização</b>
O superintendente do Hospital Premier, Samir Salman, conta que os fluxos de trabalho precisaram ser adaptados para manter os funcionários e pacientes na quarentena. Por isso, também foram pensadas alternativas de lazer, como sessões de cinema no auditório e aulas de ginástica. Nesse processo, foram descobertos novos "talentos". "Tem auxiliar de enfermagem que dá aula de ginástica, outra que dá aula de ioga. Temos uma técnica de farmácia que descobrimos que é dentista, que atendeu uma funcionária que estava com dor", conta.
Com a prorrogação da quarentena até junho, funcionários estão saindo aos poucos por dois dias antes de regressar (e passar por um isolamento mais rígido, sem contato com os demais por até 14 dias) e até retornam com novidades. "O porteiro também é barbeiro e cabeleireiro. Ele está em uma quarentena após sair e voltou com apetrechos, já está com a agenda lotada", exemplifica Salman.
A secretária executiva Safia Khaled, de 29 anos, passou a comandar a cozinha ao lado do namorado, que é chef, e tem ajuda de uma auxiliar de enfermagem e de copeiras. A sugestão foi do superintendente. "Lembro que disse: Está falando sério? O meu trabalho era mais de escritório", conta.
No início, ficou impressionada com as copeiras, que preparam refeições para as especificidades de cada paciente. "É uma profissão não tão valorizada, e essas mulheres são tão incríveis. Fiquei muito emocionada com o trabalho, foi a primeira coisa que escrevi no diário (que mantém sobre a quarentena). Estava tudo muito à flor da pele, queria ter esse registro."
Marcio Sampaio, de 41 anos, diretor de Serviços de Saúde, também passou a valorizar mais o trabalho de outros profissionais ao começar a exercer atividades de enfermagem. "Me faz repensar processos de trabalho, me aproximei das dores, das dificuldades."
Ele exemplifica com duas situações do dia a dia. Uma foi quando molhou o sapato ao ajudar a banhar um paciente ao lado de uma colega, que comentou que a situação é costumeira. Outra foi perceber, ao tomar uma ducha, que não havia saboneteira ou espaço para xampu no vestiário que o hospital mantém, o que dificulta a rotina de higienização. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>