Há pelo menos 20 anos, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz vem flertando com a obra do escritor Lima Barreto (1881-1922). Mas foi em 2007 que ela iniciou o que viria a se tornar seu trabalho de maior fôlego e que reforçará sua imagem de uma das mais importantes pesquisadoras brasileiras – Lima Barreto: Triste Visionário, esperada biografia que traça não apenas a trajetória artística do autor, mas também seus dissabores pessoais.
Trata-se do mais completo mapeamento sobre o escritor desde o pioneiro trabalho de Francisco de Assis Barbosa que, em 1952, lançou A Vida de Lima Barreto, que resgatou a importância da escrita do autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, injustamente esquecida desde sua morte, em 1922. Esgotado há alguns anos, o volume ganha agora oportuna reedição pela editora Autêntica.
Ciente da importância da pesquisa de Barbosa (dedica-lhe até um capítulo), Lilia oferece um olhar original ao traçar a trajetória do biografado a partir da questão racial – mulato, filho de pais com instrução, mas de humilde situação financeira, Lima Barreto, a partir da adoção de um estilo seco e direto, lutava para que a literatura fosse um meio de levar ao homem comum a mensagem de sua libertação e um estímulo para continuar lutando para o reconhecimento de todos os seus direitos fundamentais.
Lilia fará a palestra de abertura da 15.ª Flip, no dia 26 de julho, pois o evento vai homenagear Lima – uma honra há muito esperada. Afinal, apesar de ser o grande romancista da geração pós-machadiana e pioneiro do romance moderno brasileiro, Lima via com olhar muito crítico a obra de Machado, além de ter esnobado a geração dos modernistas. Dono de uma linguagem rica de comunicação e de recursos expressivos, Lima tinha a escrita como plataforma social. “Seus romances punham em relevo as zonas suburbanas e se engajavam pela ironia e pela sátira, nessa filosofia nacionalista que não poupava a caturrice dos gramáticos e dos puristas, que ainda teimavam em escrever como os portugueses”, afirma a pesquisadora Eliane Vasconcelos. Não reconhecido devidamente em sua época, Lima revelou-se um homem do futuro, como constata Lilia na seguinte entrevista.
Lima tinha um projeto de vida que era a literatura. Por que não deu certo?
Durante um certo tempo, tratou-se de Lima Barreto sob a perspectiva da vitimização. Ele era de fato uma vítima, mas tinha um projeto, e isso é muito importante de a gente destacar. Brinco que era o projeto do contra, ou seja, “vou me inserir sendo do contra”. Ele era contra a Academia Brasileira de Letras, apesar de ter tentado entrar três vezes. Era contra o futebol, numa época em que o esporte já fazia muitas paixões.
Era contra um certo feminismo, mas contra o assassinato de mulheres. Contra a literatura de brindes, de sobremesas e de toaletes, e a favor de uma literatura realista. Também foi anarquista num momento que era complicado ser anarquista. Então, ele tinha um projeto? Tinha. Ele era contrário às políticas de exclusivismos da República. Qual era o projeto do Lima Barreto? Era o de contrariar. Isso não deu certo porque o primeiro livro dele acusava um tipo de jornalismo, que silenciou diante de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909). Mais adiante, sai Numa e a Ninfa (1915), contrário aos políticos, ou seja, em pouco tempo, conseguiu ter contra ele jornalistas e políticos. E aí foi acumulando desafetos até terminar a vida isolado, mas não vitimizado.
O fato de ele ser negro e não ter recursos contribuiu para a dificuldade em não ser aceito?
Contribuiu e ele também agenciou muito isso, a partir da ideia de que não é um figurante passivo – vai construir sua persona. Parte dessa construção é de um Lima Barreto que faz um Rio de Janeiro mais amplo, que inclui o centro e os subúrbios, onde ele vivia. Ele sempre morou em Todos os Santos. Então, a partir desse trajeto pelo trem da Central do Brasil, Lima descreve a pobreza com imensa dignidade, assim como observa a aristocracia do subúrbio com muito escárnio, concentrada sobretudo em Botafogo e Méier, bairros que desprezava solenemente. Lima foi uma pessoa pobre, mas de uma classe média de funcionários públicos do Rio de Janeiro. Ele era um amanuense paradoxal – o amanuense redige cartas e ele tinha uma letra péssima.
Ele sofreu?
Sofreu. Ele não era da linha da pobreza, mas, como amanuense, teve de ser arrimo de família muito cedo – em 1902, o pai teve acessos de loucura que seriam diagnosticados como neurastenia e, a partir de 1903, Lima é arrimo de família. Então, teve uma vida difícil? Isso explica? Não. Outro ponto: o fato de ser negro. No Brasil, sabemos que as pessoas manipulam a questão da cor. O que fez Lima Barreto? Trouxe a questão da cor para o primeiro plano, sobretudo nesse momento, início do século 20, quando era assunto secundário. Ele trouxe para frente, sobretudo nas crônicas, nas quais fez uma denúncia muito forte e fundamental contra o racismo existente no Brasil. Lima não chamava de racismo institucional, como hoje chamamos, mas já diagnosticava como pós-abolição, um momento que ele viveu. Um momento em que se tentou perpetuar as diferenças pautadas primeiro numa instituição perversa, como era a escravidão, e depois na cor da pele. Ele mesmo se descrevia da cor de uma azeitona escura, uma forma de usar essa régua da cor social que, ao mesmo tempo, pode incluir, mas também é exclusivista e cria uma série de discriminações.
Fale sobre a relação não muito fácil com Machado de Assis.
Quando comecei a dizer que estava trabalhando com o Lima Barreto, todos aqueles que já trabalharam com Lima Barreto – me antecedeu não só a biografia fundamental do Francisco de Assis Barbosa, como uma geração de escritores como Beatriz Resende, Nicolau Sevcenko, Arnoni Prado, Denilson Botelho, Felipe Botelho, Luciana Hidalgo -, todos nos deparamos com o Fla-Flu fundamental entre Lima e Machado. Como, se pesquisasse Lima, você fosse anti-Machado. Não. Boa parte que tentei manter em meu livro é essa ambivalência. Até no título: triste e visionário. Triste porque ele era triste, mas porque triste é teimoso. E visionário por conta da frase que Floriano diz para o principal personagem do Lima Barreto, o Policarpo Quaresma. “Policarpo, tu és um visionário!” Ele tem disso. O que faz o Lima Barreto? Constrói para si um inimigo: Machado.
Como foi?
Queiramos ou não, na época em que Lima se transformou em um escritor, 1908, 1909, a grande referência era Machado. Lima tinha na sua biblioteca, a Limana, quase todos os livros do Machado, o que comprova que lia e gostava. Mas ele vai se construir como uma persona literária oposta a Machado, que representava a academia, a instituição. Ele seria o anti-instituição. Só que essa era uma visão que o próprio Lima faz questão de desfazer. Porque não é verdade dizer que Machado não foi um abolicionista. Em sua função de funcionário público, Machado sempre votava contrário à escravidão e a favor dos escravizados. Desse ângulo, eles não eram tão diferentes. E Machado veio de uma família ainda mais depauperada que a do Lima, além de também ser descendente de escravo. Assim, apesar dos muitos lados em comum, assumiram projetos literários muito distintos.
Lima morreu com 41 anos. É possível acreditar que, se tivesse vivido mais, teria atingido uma maturidade literária?
Lima tinha muita pressa, muita urgência. História do futuro não existe. E historiador, em geral, é muito ruim em premonição. No pouco tempo de vida, tão difícil, ele produziu romances fundamentais, e ainda tinha muitos projetos no bolso. Um livro que anuncia e escreve poucos capítulos é Cemitério dos Vivos. Lima dizia que seria o seu livro fundamental, um livro na veia mesmo, porque tratava da sua experiência em 1914 e 1919, quando foi internado no hospício. O personagem é Vicente Mascarenhas. Aliás, todas as personagens de Lima são ele mesmo, porque ele vive assombrado por esses seres. O que me parece é que Cemitério dos Vivos era um projeto fundamental e esse personagem era um reflexo do Lima: bebia muito e também se internara. Seria um livro maravilhoso, que tratava dessa realidade que Lima descreve como ninguém. Ele diz no manicômio: todos são negros, em uma época em que se criava um projeto constitucional.
Lima ironizava ao dizer no romance: vocês acreditam que a Constituição é para vocês? Não é. Vinha aí um romance fundamental.
Lima morreu em 1922 e é classificado como pré-modernista. No pouco contato que teve com os modernistas, ele apelou para a ironia e foi tachado de escritor de subúrbio. Ele observou mais a classe social dos modernistas do que propriamente o trabalho?
Penso que ocorreu uma trombada estrutural, pois não houve tempo. Lima tinha esse estilo que chamo de bate-solta. Ele batia, mas depois dizia que gostava daquela literatura. É preciso dizer que, nessa época, as relações entre São Paulo e Rio eram distantes e pouco frequentes. Então não era só Lima que não conhecia o contexto da Semana de 22: o Rio de Janeiro também não conhecia. O modernismo da Semana de 22 foi extremamente revolucionário, mas foi redutor na análise que fez dos demais autores que não estavam no seu cânone literário. Lima caiu na cesta comum dos prés. Então, ele ficou nesse limbo, justamente ele que podia ser abraçado pelos modernistas porque usava uma linguagem oral, das ruas. Escrevia sobre temas contemporâneos brasileiros, incluía os negros e outros grupos. E não foi. Assim, digo que o movimento de 1922 não chegou a Lima Barreto, que já se encontrava muito isolado e viria a morrer em novembro, duas horas antes que seu pai, com quem vivia quase às turras e temia não poder arcar com o enterro.
LIMA BARRETO: TRISTE VISIONÁRIO
Autora: Lilia Moritz Schwarcz
Editora: Companhia das Letras (704 págs., R$ 69,90 versão impressa, R$ 39,90 e-book)
A VIDA DE LIMA BARRETO
Autor: Francisco de Assis Barbosa
Editora: Autêntica (432 págs., R$ 54,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.