A arte latino-americana ganha destaque na 15ª edição da SP-Arte ao tornar-se o fio condutor da mostra Solo, um dos segmentos mais atrativos do evento desde sua criação, em 2014, por ser um dos poucos espaços organizados a partir de critérios curatoriais. O núcleo não apenas abre um espaço importante para a produção da região, como propõe uma reflexão necessária sobre as formas de ver e representar este vasto território e sua população. As doze exposições individuais que compõem o núcleo se debruçam sobre uma noção de identidade bastante complexa e diversa, marcada por séculos de dominação colonial, pela consolidação de uma série de lugares-comuns e estereótipos, muitas vezes impostos ou referendados de fora para dentro. Como sintetiza a pesquisadora chilena Alexia Tala, convidada para desenvolver a curadoria de Solo, cabe à arte “desnaturalizar as premissas que assumimos como verdade”.
Segundo ela, que acompanha há muitos anos a produção de artistas que trabalham com a história, a memória coletiva e uma arte intrinsecamente conectada com a trama social que a cerca, não foi difícil chegar aos nomes que compõem a mostra este ano. Com temas, linguagens e nacionalidades variadas, eles têm em comum o desejo de responder, poeticamente, a questões como “quem somos” ou “como nos vemos”. Como a proposta de Solo é que cada artista seja apresentado individualmente por sua própria galeria, a parte mais complexa do processo foi coordenar essas participações com as várias instituições convidadas, de forma a tornar viável cada uma dessas mostras, sem perder a coesão entre elas. Um rápido olhar pela trajetória das galerias selecionadas deixa evidente que a maioria delas é relativamente nova e apresenta propostas alternativas e experimentais, confirmando que o interesse em pesquisas mais ligadas à memória regional e em sintonia com outros campos de pensamento, como a etnografia e a antropologia, ganhou vigor mais recentemente.
A mostra é estruturada em quatro blocos temáticos. O primeiro deles intitula-se América, Terra de oportunidades, numa referência irônica à visão do Novo Mundo como uma terra vazia a ser explorada, repleta de riquezas à disposição de quem ousa desbravá-la. A terra como capital, como símbolo de poder, está representada na obra da artista chilena Alejandra Prieto.
O segundo bloco dialoga com a memória das expedições dos primeiros viajantes. Expedições Imaginárias – Medições do Invisível se debruça sobre o olhar distante e exótico, que foi sendo construído ao longo de séculos pelos núcleos de poder hegemônico e que acaba sendo reabsorvido localmente, de forma acrítica. Essa observação do território, que mescla o científico e o poético, faz parte do processo criativo da também chilena María Edwards, autora de um projeto inédito para a SP-Arte no qual combina referências históricas e documentais a viagens ficcionais. “Ela mistura a tradição dos viajantes com a maneira de explorar o mundo hoje”, explica Alexia. A dupla brasileira Manata Laudares também se alimenta de referências simbólicas altamente carregadas de significado para desconstruir e denunciar esse exotismo extemporâneo.
Os dois últimos segmentos, Homens do Paraíso e do Inferno e Cronistas Contemporâneos, contemplam o maior número de participantes, envolvidos num esforço crescente de reinterpretação das tradições a partir de uma afirmação militante, do uso do fazer artístico como forma de resgatar uma cultura popular por muito tempo relegada ao silêncio, e do recurso cada vez mais frequente a documentos históricos como base para recontar histórias e reafirmar identidades. Há trabalhos do argentino Feliciano Centurión, que participou da última Bienal de São Paulo, dos brasileiros Ayrson Heráclito (que lida com a memória contemporânea da escravidão) e Rafael Pagatini (que lida com o nosso passado autoritário) e da peruana Nicole Franchy.
A curadora destaca também o trabalho de colagem fotográfica desenvolvido pelo guatemalteca Luiz González Palma, que trabalha a herança colonial reconstruindo imagens dos ladinos (como são chamados os mestiços entre brancos e índios) e toca em uma ferida dolorida e profundamente atual. Afinal, 65% da população da Guatemala é indígena e não tem voz política. Segundo Alexia, que também está a cargo da próxima Bienal da Guatemala, que ocorrerá em 2020, e conhece bem a situação do país, apesar de serem a maioria da população, os índios não têm o mínimo de direitos garantidos. Ela conta que somente alguns anos atrás ocorreu a primeira vitória judicial de uma mulher índia num tribunal guatemalteca, porque finalmente os julgamentos (sempre realizados em espanhol) passaram a ser traduzidos para a sua língua.
Além da Guatemala, os países mais bem representados em sua seleção são Brasil e Chile, países nos quais a curadora trabalha com maior assiduidade. Curiosamente, apesar da proximidade regional, foi graças a um crítico inglês, Guy Brett, que Alexia se aproximou da cena brasileira, onde frequentemente desenvolve trabalhos. A relação com a SP-Arte também é intensa e a ideia de criar um espaço dedicado à América Latina é um projeto que já vinha sendo acalentado há tempos. Talvez seja um sinal de que finalmente se delineie um maior vínculo regional, com a inclusão do Brasil – que, no passado, muitas vezes ficou alheio ao que ocorria nos países vizinhos – nesse processo. Como preconiza Randolpho Lamonier, “em 2030, o Brasil percebeu que era da América Latina”. Neste trabalho, o artista brasileiro, que lança mão da técnica artesanal do bordado para dar forma a enfáticos posicionamentos políticos, associa denúncia e desejo, reafirma um passado de negação da identidade latina ao mesmo tempo que propõe um horizonte mais integrado e consciente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.