Após o governo enquadrar professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) que criticaram a atuação do presidente Jair Bolsonaro na pandemia, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) disparou um ofício a diretores do órgão informando que a divulgação de estudos e pesquisas antes de "conclusão e aprovação definitiva" pode configurar infração disciplinar, sujeita a punição. O documento está sendo chamado por servidores do instituto de "ofício da mordaça".
O ofício é assinado pelo presidente do Ipea, Carlos Von Doellinger, escolhido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda na campanha de 2018 para comandar o instituto. Enviado na última quinta-feira, 4, aos diretores, o documento despertou reação negativa no corpo técnico, que vê na medida uma tentativa de obter um nível de controle "pouco usual" sobre as publicações.
O ofício foi visto como uma tentativa de coibir publicações de estudos com conteúdo mais crítico a políticas governamentais ou que mostrem resultados distintos do que gostaria a atual gestão. Na avaliação de servidores ouvidos reservadamente pelo Estadão/Broadcast, há o temor de que o episódio transmita a mensagem de que o Ipea agora só vai publicar estudos "chapa-branca", ou seja, alinhados ao governo, o que arranharia a credibilidade e a relevância do órgão.
Embora tenha em seu histórico episódios polêmicos envolvendo suspeitas de ingerência política, servidores do Ipea consideram que o corpo técnico é plural em termos de campos de pesquisa e visões.
No texto, Doellinger informa que "os estudos e pesquisas são direito patrimonial do Ipea, a quem cabe definir o momento e a forma de divulgação". "Solicito seja dada ciência a todos os técnicos que a divulgação de estudos e pesquisas somente pode ocorrer após sua conclusão e aprovação definitiva, devendo serem seguidos normas, protocolos e rotinas internas, inclusive quanto à interação com os órgãos de imprensa", diz o documento.
O presidente do instituo também alerta que "a inobservância das rotinas de aprovação e divulgação de estudos fragiliza a imagem externa da Instituição e, no plano da conduta individual do servidor, pode configurar descumprimento de dever ético e, eventualmente, até infração disciplinar".
O servidor que comete infração vira alvo de um processo administrativo disciplinar (PAD). Se o desvio for comprovado, ele pode sofrer advertência, suspensão ou até demissão. Outras punições existentes são cassação de aposentadoria, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.
Além da ameaça de punição, o ofício gerou desconforto porque foram usadas expressões vagas, deixando dúvidas até mesmo sobre a possibilidade de pesquisadores publicarem artigos e estudos em publicações de fora do Ipea, o que geralmente traz prestígio à instituição e agrega conhecimento, pois os textos são revisados por pares do mundo científico. Integrantes do órgão já publicaram em revistas respeitadas internacionalmente, como Nature e Science.
Segundo apurou a reportagem, o documento também representou para os servidores a escalada de um movimento que já vinha ocorrendo nos bastidores: a menor frequência com que técnicos tidos como mais críticos dentro do instituto eram autorizados a falar com a imprensa. O clima pesado acabou criando uma espécie de "censura prévia", com pesquisadores cada vez mais temerosos em conceder entrevistas ou assinar artigos na imprensa atrelando seu nome ao do instituto.
<b>Ingerência</b>
Essa não é a primeira vez que o instituto fica no centro de suspeitas de ingerência. Em 2014, o então diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Herton Araújo, entregou o cargo após a cúpula do órgão impedir a publicação, no período eleitoral, de um estudo inédito sobre a evolução no número de miseráveis no governo Dilma Rousseff (PT).
Em 2007, o então presidente do órgão, Márcio Pochmann, foi acusado de ter feito "expurgos" com o afastamento de quatro pesquisadores críticos às políticas governamentais, dois deles cedidos do BNDES e outros dois sem vínculo empregatício. Na época, ele negou qualquer perseguição.
Mais recentemente, no governo Michel Temer, o chefe do Ipea na ocasião, Ernesto Lozardo, divulgou uma nota contestando informações que estavam em estudo publicado por dois pesquisadores do órgão e que citavam efeitos negativos do teto de gastos, ainda em tramitação no Congresso, sobre os gastos com saúde.
O <b>Estadão/Broadcast</b> procurou a assessoria do Ipea, mas até a publicação desse texto não houve retorno.