Quando era bem jovem, o fotógrafo e cineasta inglês Isaac Julien, hoje com 54 anos, costumava frequentar uma turma de rebeldes em Londres. Era amigo de hippies, punks e até – descobriu depois – de uma terrorista do grupo alemão Baader Meinhof, Astrid Proll, que emigrou para a Inglaterra usando o codinome Anna Puttick. Sua atração por desajustados começou aos 15 anos. Negro e gay, era natural que buscasse a companhia de outros renegados pela sociedade burguesa.
Formado em pintura e cinema na Saint Martins School of Art, onde os professores eram todos de classe média e marxistas, Julien conheceu o cineasta Derek Jarman, diretor de Caravaggio, e decidiu seguir seus passos, dirigindo mais tarde (em 2008) um filme sobre ele. Hoje é um dos fotógrafos e cineastas experimentais mais badalados do mundo, festejado até no MoMA de Nova York, que exibiu até fevereiro seu filme imersivo Ten Thousand Waves, projetado em nove telas. Agora ele mostra as razões de seu sucesso na exposição Playtime, na Galeria Nara Roesler, em que exibe fotos e seu filme homônimo sobre a recente crise econômica mundial deflagrada em 2008.
Playtime, híbrido de ficção e documentário, foi concebido como um projeto em duas partes. Playtime, a primeira, é uma instalação com sete telas seguindo diferentes personagens em três locações – Londres, Reykjavik e Dubai. Capital, a segunda parte, colocaria Playtime em contexto, ou seja, daria o suporte teórico para que o espectador pudesse entender a interconexão de dramas tão díspares como o de um consultor do mercado de arte inglês (o ator James Franco), uma faxineira finlandesa em Dubai (Mercedes Cabral) e um desesperado islandês (Ingvar Eggert Sigurosson)que perdeu tudo em 2008, quando o crash financeiro empurrou o mundo para o abismo.
Três anos de pesquisas levaram Julien a compreender que ele jamais faria um filme analítico sobre essa crise. “Até Eisenstein tentou filmar O Capital, em 1928, mas isso é impossível”, observa Julien, lembrando que o ilustrador de origem húngara Hugo Gellert não desistiu do projeto e tentou adaptar, em 1934, a obra de Marx para os quadrinhos. Outro fiasco. Playtime, que usa o título homônimo da clássica comédia de Jacques Tati, de 1967, não chega a ter essa pretensão. Aqui não há nenhum monsieur Hulot deslumbrado com o mundo tecnológico. Em seu lugar, o protagonista é o dinheiro. O Playtime de Julien é uma tentativa de entender que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas mediada por coisas”.
Temas complexos sempre atraíram Julien, que foi recompensado por mostras em grandes museus e prêmios importantes como o de melhor filme na Semana da Crítica no Festival de Cannes de 1991 por Young Soul Rebels, que descreve a cena punk londrina dos anos 1970 por meio do conflituoso relacionamento entre um gay violento e seu parceiro. Nele sobram farpas para a própria comunidade homossexual, que não gostou do modo como foi retratada na tela (os punks fazem discursos marxistas, mas usam roupas caras de Vivienne Westwood). Seria Julien um marxista? “Nem tanto, eu diria que sou mais gramsciano, como Lina Bo Bardi, que escolhi como assunto do meu próximo filme”.
Um filme sobre a arquiteta de origem italiana que projetou o Masp é uma surpresa, partindo de um cineasta que não pretende exatamente fazer um documentário. “Ainda não pensei bem qual será o gênero, mas vou recorrer à performance e outras linguagens para contar a sua história, que me fascina desde que mostrei minhas instalações no Sesc Pompeia” (na exposição Geopoética, em 2012).
Julien adora cinebiografias. Em 1997, o líder trabalhistaTony Blair acabara de se tornar primeiro ministro inglês quando o artista resolveu provocar a Inglaterra conservadora exibindo, na Hayward Gallery, um filme seu de 1989 que mostrava a cena gay no Harlem dos anos 1920, Looking for Langston,vagamente inspirado na vida do escritor negro e gay Langston Hughes (1902-1967). Hughes, mais que James Baldwyn, era discriminado pela própria comunidade por não se encaixar nos padrões. “Naquela época, pensava em filmar Giovanni, de James Baldwyn, mas os direitos do livro já haviam sido comprados pela produtora de Madonna”, revela.
Nos últimos tempos, os interesses de Julien convergem para o Leste Asiático. A
instalação que ele mostrou no Sesc Pompeia há dois anos, Ten Thousand Waves (2010), mistura a antiga mitologia oriental (a história de uma deusa chinesa que salva pescadores) à tragédica contemporânea, associando o afogamento de catadores de mariscos chineses na baía inglesa de Morecambe, em 2004. “É minha forma alegórica de tratar do tema da migração, que tantas catástrofes têm provocado no mundo, e prestar tributo à ancestral cultura chinesa”.
Publicado em conjunto com a exposição Ten Thousand Waves no MoMA de Nova York (248 págs., US$ 55), o livro Riot é um resumo da vida profissional do fotógrafo e cineasta Isaac Julien desde que descobriu a cultura boêmia em Londres, nos anos 1970, em busca de sua identidade artística.
Transgressor, juntou-se à cena punk ao ver um show do Sex Pistols, em 1975, na escola de arte onde estudava e, fascinado pelo cinema experimental de Chris Marker (autor do radical Sans Soleil), formou um grupo para rodar filmes contra o sistema, usando desde a filosofia de Walter Benjamin até as canções panfletárias em defesa dos gays compostas Jimmy Somerville.
Após registrar em documentários, nos anos 1980, a ação da polícia contra manifestantes políticos, Julien rodou sua obra seminal, Looking for Langston, em que mostra como a cultura negra e o jazz do Harlem nos anos 1920 ajudaram a liberar reprimidos como o poeta Langston Hughes. Desde o ano 2000, o trabalho de Julien evoluiu para instalações que usam o cinema como plataforma, mas tomam como referência o trabalho em vídeo de artistas como Bruce Nauman e Bill Viola.