Mundo das Palavras

Jacques Brel: seu encontro com Chico Buarque

“É. Faz muito tempo”, disse de modo reflexivo o belga Jacques Brel, após ouvir Chico Buarque contar que conhecia as canções dele, desde quando tinha 11 anos de idade e morava na Itália. O pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, então, lecionava na Universidade de Roma. Lá, em 1955, Chico ganhou de uma tia radicada em Paris “um disquinho azul” com duas músicas de Brel. O presente viera de Paris porque lá Brel se instalara. Chico conhecera aquela cidade, no ano anterior, em companhia de sua mãe.  
 
Aquela conversa entre os dois artistas, ocorrida há 48 anos, no estúdio de gravadora RGE, do Rio de Janeiro, permanece até hoje desconhecida. Na verdade, sequer há registro facilmente localizável da passagem de Brel pelo Rio de Janeiro. Sabe-se que ele esteve na antiga capital federal somente porque o escritor e jornalista Paulo de Faria Pinho contou que o entrevistou em 1967, numa crônica publicada pelo extinto Jornal do Brasil, há 28 anos. Era 1988 e, àquela altura, fazia uma década que Brel morrera. Paulo escreveu sobre ele devido aos vínculos que mantém com a Bélgica e com a fundação que cuida da preservação da memória de Brel. Os artigos de Paulo já foram publicados pelo jornal La Libre Bélgique e pela revista Jef, editada pela Fondation Internationale Jacques Brel.
 
Além de Paulo, o próprio Chico Buarque confirmou a ocorrência do encontro. Chico contou numa entrevista concedida em 1999 à Revista Brazuca (de circulação restrita à comunidade de brasileiros residentes em Paris e em Bruxelas): “Estava gravando ‘Carolina’ e Brel apareceu no estúdio. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar para ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disquinho. Eu ouvia aquilo adoidado”. E num indício do significado que tivera para ele aquele encontro, Chico acrescentou: “As letras dele ficaram marcadas em mim”.
 
Hoje, este encontro como também o contexto em que ele ocorreu dentro das carreiras de Brel e de Chico começará a ser reconstituído aqui.  As trajetórias artísticas dos dois guardam evidentes semelhanças nas temáticas sociais e amorosas tratadas, nos  elevados graus de sensibilidade e refinamento de suas produções, nas interfaces mantidas com as artes eruditas, e, nas habilidades com as quais ambos usaram diferentes meios de expressão. 
 
Por que Brel, naquela conversa, considerou como “muito tempo” o período iniciado com o ano de 1955? Talvez ajude a compreendê-lo a lembrança de que ele se referia a uma fase histórica atravessada, no mundo todo, num ritmo acelerado, sobretudo pelos jovens, tantas foram as transformações comportamentais e políticas nela concentradas. 
 
Quando a carreira de Brel deslanchou em Paris, em 1955, levando suas músicas até o adolescente Chico, somente 2 anos tinham transcorridos desde que ele conseguira, ainda em Bruxelas, onde se apresentava em bares, gravar suas duas primeiras canções num disco de 78 rotações – bolachona preta de goma-laca. Tinha, na ocasião, 24 anos de idade. Na efervescência cultural europeia da década seguinte, Brel se tornaria um produtivo e admirado artista com atuações como cantor, compositor, poeta, ator, diretor, e roteirista. Seus textos, suas melodias e suas interpretações dramáticas conquistaram o respeito de críticos eruditos, graças ao rigor e a inclemência com os quais os avaliava. Foram estas exigências – conta Paulo Pinho -, as responsáveis por ele ter jogado no lixo metade das mais de 400 canções que compôs. A tensão criativa que suportava levou-o ao consumo diário de 4 maços de cigarros, uma violência orgânica que ele pagou com a abreviação de seu tempo de vida, morrendo de câncer aos 49 anos de idade. Mas que também lhe valeu, por exemplo, a celebração de um amor na canção “Ne me quitte pas”, considerada uma das cinco mais belas da História da Música Popular. E que, lançada por ele em 1959, foi gravada por uma infinidade de cantores de todos os continentes, inclusive os de línguas bósnia e croata, e em esperanto: Charles Aznavour, Nina Simone, Frank Sinatra, Sylvie Vartan, Juliette Gréco, Marlene Dietrich, Shirley Bassey, Johnny Halliday, Yves Montand, David Bowie, Sting, Gilbert Bécaud, Mireille Mathieu, Dalida, Ray Charles,  Madonna, Ornella Vanoni, Gigliola Cinquetti, Lucho Gatica, Barbra Streisand, Fito Páez. No Brasil, por Maysa Matarazzo, Cassia Eller, Maria Gadú, Fagner, Ângela Ro Ro, entre outros. 
 
Também nas apresentações de seus shows Brel era igualmente implacável consigo mesmo. Muitas vezes, chegava a vomitar de tensão nos bastidores, conta Pinho. Mas,  entrava nos palcos e deixava perplexos seus públicos perplexos, tal o vigor que mostrava nas suas interpretações. Por isto, lotava os teatros Olympia e Bobino, em Paris e outros, espalhados pelo mundo. Houve ano em chegou a se apresentar 365 vezes. Brel – diz Pinho – se tornou o menestrel que cantava “a amizade, a ternura, os amores perdidos e sofridos, a solidão dos velhos, e, a busca eterna da infância perdida”. E fazia isto de modo belo e crítico, não poupando “os burgueses, a igreja, as guerras e as injustiças”.     
 
Mas, em 1967, quando se encontrou com o Chico, a França, onde morava, atravessava um momento de muito nervosismo, nas vésperas de um acontecimento revolucionário incluído entre os mais importantes do século XX por alguns filósofos e historiadores: a rebelião estudantil apoiada por 10 milhões de operários.
 
Por isto, Brel já tinha tomado uma decisão drástica: iria encerrar sua carreira de cantor de palco. Naquele mesmo ano, ele se despediu no Olympia de seu público parisiense. Foi aplaudido, ininterruptamente, por 27 minutos. (Nas próximas semanas, o prosseguimento da reconstituição deste encontro).
 

Posso ajudar?