Jards Macalé nunca ouviu tamanha vaia na vida. Espantou-se com o fato de que as pessoas que lotavam aquele Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, no ano de 1969, se levantaram das suas cadeiras e manifestavam seu desagrado a plenos pulmões.
“Não sei quem inscreveu aquela música no Festival Internacional da Canção”, relembra o cantor e compositor carioca. Décadas depois, ao anunciar a mesma canção, a hoje icônica Gotham City, em uma apresentação no porto-alegrense Theatro São Pedro, pediu para que os presentes repetissem o repúdio – embora, dessa vez, fosse uma grande brincadeira.
Jards Macalé Anet da Silva, natural da Tijuca, ultrapassou a marca de meio século de carreira quietinho, sem alarde. Entre as várias datas usadas para marcar o início da empreitada artística de forma profissional, está a entrada dele no Grupo Opinião, substituindo o violonista Roberto Nascimento, em 1965. Não é de comemorar datas passadas, como explicou ele ao Estado. “É legal (chegar ao meio século de carreira) porque é uma verdade, é uma vitória ter sobrevivido aos 50 de trajetória”, diz. “Mas eu não gosto de chamar de carreira. Eu digo 50 anos de correria.”
Correria que Jards faz como poucos da sua geração. Aos 72 anos, sua agenda está cheia. A ponto da entrevista ser agendada por telefone, enquanto ele estava no Rio Grande do Norte, para o Flipipa (Festival Literário da Pipa), realizado no município de Tibau do Sul, a 77 quilômetros da capital Natal. “Que dia maravilhoso. Estou aqui falando com você olhando para essa praia maravilhosa. É um cenário magnífico.” Jards estava escalado para participar de um debate sobre o amigo Waly Salomão (morto em 2003, aos 59 anos).
Enquanto mirava o mar, Jards explica por que somente depois de cinco décadas de carreira decidiu lançar um registro ao vivo. Jards Macalé – Ao Vivo, que sai pela Som Livre, é enfim um registro da potência artística do homem cuja missão involuntária é ir na contramão da música brasileira.
Sujeito conhecido como um dos “malditos”, embora seja amável fora do palco, explica que “o amor é a razão de tudo, meu caro”. O registro do CD e DVD foi promovido pela noiva de Jards, a diretora gaúcha Rejane Zilles. Ele se disse impressionado com o filme dela, Walachai, lançado em 2009, e decidiu aceitar o convite para estrear no formato pela primeira vez – uma estreia tardia que, por si só, é uma contramão, em se tratando de uma indústria fonográfica que se segura como pode na boa vendagem de registros de show há mais de uma década. “Eu nunca gostei de gravar qualquer coisa, seja áudio, seja imagem, ao vivo. Não sem que haja um trabalho posterior e tal”, explica. “Mas ela (Rejane) fez a proposta para gravarmos. Resisti um pouco no início, mas acabei cedendo”, explica o músico, tão adepto do amor que encampou a batalha de incluir a palavra na bandeira do País, ao lado de “ordem e progresso”.
O amor, aliás, acompanha a carreira de Jards Macalé, direta ou indiretamente. Desde o primeiro registro próprio, o compacto duplo Só Morto, lançado em 1969. A primeira daquelas quatro músicas, chamada Soluços, é uma canção de amor. Na verdade, de desamor. Daqueles pesados, cuja dor do dono da voz é como uma agulha penetrando diretamente no coração. Uma faixa escrita quando ele tinha apenas 15 anos, embora “como dizia Nelson Rodrigues, não sabia sequer cumprimentar uma mulher”. “Essa foi uma das minhas primeiras músicas. Fiz algumas antes, na verdade, mas nada que valesse a pena.”
O compacto hoje é venerado pelas gerações mais novas, assim como os trabalhos que vieram em sequência, como a produção do icônico álbum Transa, de Caetano Veloso, e do disco, de fato, de estreia, que levava seu nome, ambos lançados três anos depois de Só Morto.
Não é por acaso que, em um dos formatos de shows de Jards, atualmente – e registrado no Ao Vivo – é acompanhado da ótima banda Lets Play That, formada pelos jovens músicos Leandro Joaquim (trompete), Thiago Queiroz (sax), Victor Gottardi (guitarra), Ricardo Rito (teclado), Thomas Harres (bateria) e Pedro Dantas (baixo).
“Adoro montar bandas. Montei bandas para mim, para o Caetano Veloso, para a Gal Costa. Sempre que montava uma, alguém vinha e tirava de mim”, explica Jards. “Daí montava uma nova. Gosto de ouvir o que eles têm para me dizer. E ser ouvido. É uma troca livre, entende?” Ele, contud0, recusa a ideia de algo vampiresco, de sugar o vigor da geração mais jovem. O morcego da MPB não gosta de sangue. “Gosto é de melaço.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.