Depois de um ler um livro, o sentimento de ter uma história melhor do que aquela pode não ser lá muito comum. Insistir no caso, escrever a história e publicar por uma grande editora é menos comum ainda – aliás, nada de comum mesmo é a história de Jessé Andarilho (1981), jornalista e escritor carioca que lança, agora, pela Objetiva, o romance Fiel.
O livro narra a história de Felipe, menino bem-educado e inteligente, morador de Antares, zona oeste do Rio (como Jessé), que depois de atuações expressivas na seleção de futebol da comunidade local é atraído pelo crime e então sofre a ascensão e queda de um menino no tráfico carioca, como anuncia o subtítulo da edição.
A relação de Jessé com a literatura começou quando ele já era um adulto, lá por 2004. “Quando comecei a ler livros, eram sempre histórias que faziam parte do meu dia a dia, como o Zona de Guerra, do Marcos Lopes, e o Abusado, do Caco Barcellos”, conta – nessa época, percebeu que tinha uma história intensa que poderia render um livro. Ficou com a ideia na cabeça, até 2011. Enfim, rendeu. “Eu demorei 32 anos para escrever o Fiel”, brinca, mas nem tanto.
Jessé costuma gastar pelo menos três horas por dia no transporte público carioca. Pensou que além da leitura poderia fazer outra coisa: escrever. O celular passou a ser a sua Remington em miniatura. “Indo pro trabalho, dentro do trem, comecei a escrever no bloco de notas, sem pretensão”, conta. Durante a escrita do romance, em casa, ele lia o texto no celular e reescrevia no computador.
“Quando já tinha uns quatro capítulos prontos, mostrei para um amigo de Ipanema. Ele gostou e começou a me dar livros.” Passou a ler George Orwell e Albert Camus. Terminou o Fiel, entregou o manuscrito a Celso Athayde, um de seus sócios no projeto Central Única das Favelas (Cufa), que gostou tanto que o indicou para a editora.
Jessé diz que não tinha pretensão de assinar contrato ou mesmo mandar o livro para fora da favela. “Conforme fui conhecendo pessoas, ampliando minha rede, começaram a me incentivar, isso é literatura, é bom, as pessoas vão gostar de ler. Acreditei”, conta.
Fiel
“Patrão, eu nunca pensei nisso pra minha vida, mas se isso for ajudar, aceito dentro das minhas condições”, responde Felipe para o chefe do tráfico, quando o convite acontece. Quando o patrão anuncia seu novo fiel, “todos ficaram sem entender direito o que estava acontecendo”. A verdade é que o personagem cava seu espaço e vira um verdadeiro fenômeno no meio. Mesmo sendo um prodígio na vida dentro da lei.
“O fascínio acontece”, diz Jessé. “Imagina o preto, pobre, favelado, assistindo aos comerciais de TV de tênis, mulheres, aí vê um cara criado contigo, mais feio, de repente bota uma pistola na cintura e começa a sair com as garotas mais bonitas”, supõe. “Mesmo tendo uma boa criação, o cara acaba num deslize, no lugar errado e na hora errada. É uma sedução e o cara acaba cedendo”, explica.
Na contracapa do livro, MV Bill escreve: “A escrita é interna, vinda de um cara que viveu ali, bem de perto, e só não se afundou na criminalidade porque foi resgatado pela arte”. Atualmente, Jessé é presidente do Centro Revolucionário de Inovação e Arte (Cria), ONG de Antares, e operador de áudio freelance – depois de uma passagem pela TV Brasil como repórter do programa Aglomerado.
Além disso, Jessé está trabalhando em outros seis livros – o mais adiantado é O Efetivo Variável, romance sobre um jovem que se vê obrigado a servir o exército brasileiro.
Questionado se acredita no poder real da arte frente ao crime, por exemplo, ele é taxativo: “Acredito”. “Conheço muita gente que tinha tudo para dar errado: foram criados em favelas, tomando tapa na cara de polícia, passaram por vários perrengues com traficantes. Até quando ele conhece a arte e aí é regenerado. Um amigo em Antares, Wallace, dá aulas de balé, os caras zoam ele, mas ele não se importa, aprendeu e hoje ensina. A arte mostra que o mundo não é só aquilo que está em Antares.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.