Autor de uma escrita marcada pelo estilo seco, cortante, uma visão materialista da escrita, além de um desprezo ao enfeite e à beleza fácil, o poeta João Cabral de Melo Neto confessava, no entanto, ser insensível para a música que, para ele, era a mesma coisa que barulho. Exagero do grande escritor, como comprovam duas publicações recém-chegadas às livrarias: uma edição especial de Morte e Vida Severina, o auto de Natal pernambucano que completa 60 anos, uma das mais importantes obras poéticas brasileiras, e A Literatura Como Turismo, seleção de poemas comentados por Inez Cabral, filha do poeta, que repassa os quase 50 anos de carreira diplomática do pai para mostrar como a cultura e a paisagem dos diversos países onde morou marcaram sua poesia de forma expressiva.
Inez conta, por exemplo, que João Cabral não era tão avesso assim a qualquer música. “Nos dois anos em que permaneceu em Sevilha (entre 1956 e 58), além de fazer a pesquisa, andou por ruas e becos, conheceu gente e pôde finalmente enfronhar-se no flamenco, que tanto o fascinara em seus tempos de estudante”, escreve ela em A Literatura Como Turismo, livro que traz poemas criados em países como Espanha, Inglaterra, Senegal, Equador e Honduras.
O flamenco, na verdade, despertava fortes sentimentos no poeta: “Eu ia muito a esses lugares de flamenco; meus amigos eram cantores, bailarinas, guitarristas de flamenco”, disse o poeta em uma entrevista a Bebeto Abrantes e Belisário Franca para o documentário Recife/Sevilha: João Cabral de Melo Neto, de 2003. “Muitas vezes, eu fiz festas com eles em minha casa. Eu convivia muito com eles, e convivia muito com a cidade também.”
Inez conta, no livro, que, do que viu e conheceu em Sevilha, resguardado em sua memória, nasceria grande parte de sua obra, com poemas presentes em quase todos os seus livros posteriores. Versos tão delicados como os de Sevilha: “A cidade mais bem cortada / que vi, Sevilha; / cidade que veste o homem / sob medida. / Justa ao tamanho do corpo / ela se adapta, / branda e sem quinas, roupa / bem recortada”.
Os poemas selecionados por Inez possibilitam constatar não apenas a inspiração motivada pelo ambiente como também perceber a ruptura radical na linguagem da poesia brasileira provocada por João Cabral. Antes dele, os versos nacionais viviam à sombra do simbolismo e da retórica pomposa. Depois de Pedra do Sono, de 1942, mas especialmente com a publicação de O Cão Sem Plumas (1950), o poeta revelou-se um arquiteto da poesia – cada verso era cuidadosamente pensado, a fim de dar forma a uma estrutura consistente do poema.
Em um determinado trecho de A Literatura Como Turismo, Inez promove uma ponte com outro volume lançado agora pela Companhia das Letras, a edição comemorativa dos 60 anos de Morte e Vida Severina – em 1966, durante um jantar, João Cabral abriu uma carta que recebera de Silney Siqueira, jovem diretor que pedia autorização para montar uma versão musicada de Morte e Vida com o grupo de teatro da PUC de São Paulo, o Tuca, trabalho que seria realizado por outro rapaz em início de carreira, Chico Buarque de Holanda.
“Ele ficou preocupadíssimo ao saber que sua poesia ganharia música. Porém, nunca se sentiu no direito de cercear qualquer criação nascida de seu trabalho”, escreve Inez, relatando, em seguida, a felicidade do poeta com o trabalho. “Fomos vê-la em Nancy, na França. Ficou fascinado com a direção, a cenografia, o elenco e até, e sobretudo, com a música”, continua ela, que recebeu autorização do pai para ficar com o grupo teatral na semana em que estaria na cidade francesa.
“A literatura de João Cabral formou-se no intervalo entre a escrita culta da casa-grande, de onde ele veio, e a voz da senzala, onde descobriu a fabulação do cordel, a métrica popular, o gosto pela narrativa e pela representação de um mundo de coisas concretas, ao alcance das mãos e dos olhos”, escreve o crítico literário Antonio Carlos Secchin no prefácio da edição comemorativa de Morte e Vida Severina – o volume traz ainda outras joias, como a reprodução de um texto de Chico Buarque publicado nos anos 1960 no jornal Porandubas, o boletim interno da PUC, em que relata seus temores ao musicar o poema, e o artigo assinado pelo filósofo Alceu Amoroso Lima, também no Porandubas.
Secchin observa que a obra trava um complexo diálogo com as fontes cultas e populares da literatura espanhola, abastecendo-se também do rico manancial do folclore nordestino. “E é justamente essa reciclagem do antigo que acaba se tornando, paradoxalmente, um dos fatores de renovação da poesia de João Cabral, que injeta doses maciças de veio crítico nesse seu aproveitamento das formas da tradição.”
A ironia sobressai ao transbordamento sentimental no poema, uma evidente crítica social ao descrever a viagem de um sertanejo, Severino, que deixa sua terra natal em busca de melhores condições de vida. Durante a jornada, ele se encontra diversas vezes com a Morte até que, desiludido e impotente, se rende àquela jornada inútil – afinal, como ele, muitos outros padeceram com a miséria e o abandono. O fio de esperança surge com o nascimento de um bebê, uma criança-severina, que renova as esperanças de um espírito cansado.
Uma trajetória trágica pela rápida finitude e pela constância, bem resumida nos seguintes versos: “E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade, / e até de gente não nascida)”.
A beleza dos versos contrastava com a dificuldade que impunham uma versão musicada, como observa Chico Buarque, no texto do posfácio. “Tinha horas em que eu via que era impossível colocar músicas naqueles versos, e não consegui mesmo musicar algumas partes”, reconhece. “Você pode ver que um Manuel Bandeira é muito musical, mais que o Drummond que, comparado com João Cabral, é Beethoven.”
Depois de confessar que teve pesadelos na véspera da estreia (“com o pessoal jogando tomate”), Chico reconhece que o trabalho foi marcante em sua trajetória e também na de João Cabral. “Ele deve ter achado chocante a ideia de musicar o seu poema, que é muito seco, enquanto o espetáculo adocicava um pouco, aparava as arestas – creio que ele deve ter rejeitado a peça no início também por isso.”
O fato é que a peça fez sucesso e tornou-se histórica, o que torna ainda mais valiosas as imagens feitas, na época, pelo fotógrafo Hiroto Yoshioka, reproduzidas no livro – inclusive de um raro flagrante: o poeta rindo.
LITERATURA E TURISMO
Organização: Inez Cabral
Editora: Companhia das Letras (152 págs., R$ 39,90 versão impressa, R$ 34,90
E-book)
MORTE E VIDA SEVERINA
Autor: João Cabral de Melo Neto
Editora: Companhia das Letras (112 págs., R$ 44,90 impresso, R$ 30,90 e-book)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.