Mundo das Palavras

Juiz brasileiro na porta do céu

Saracura era um ladrão regenerado que, sozinho, conseguia surrar todos os policiais de uma patrulha – garantiam os moleques do bairro da Cidade Velha, em Belém, que o admiravam. E que, movidos por um anarquismo instintivo, devotavam desprezo aos meganhas. Saracura vendia caldo de cana, em frente ao Cine Guarani. Sua banca consistia numa caixa de madeira com pés improvisados. Que ele administrava só com um olho. Porque o outro, não conseguia abrir, provável dano das antigas brigas de rua.
 
Na sua banca, o gelo dos boiões de vidro, com o caldo de cana, se derretia. E era necessário continuar servindo à  clientela, crianças frequentadoras das sessões matutinas e vespertinas do cinema. Nesta ocasião, Saracura pedia a algum moleque que assumisse a administração do seu negócio, enquanto ele ia comprar mais gelo. Havia uma confiança, naquele gesto, que poucos podiam se gabar de ter merecido. Entre eles, o modesto autor deste texto. 
 
O outro ladrão, João Maluco, mais afortunado, conviveu com Orestes Barbosa, no Presídio Frei Caneca do Rio. Quando o conhecido autor de “Chão de Estrelas” foi condenado por sua independência, como jornalista. Lá, ele escreveria seu primoroso livro de repórter, “Bambambã”. Na obra, Orestes deixa claro que Maluco, como Saracura, também não levava a sério as chamadas autoridades constituídas. Embora não lhes aplicasse sovas físcas. Apenas as verbais. 
 
Conta o repórter-compositor que o ladrão se divertia ao narrar, num soneto estrambólico, este caso de um defunto. Ele se apresenta diante de São Pedro, Patriarca do Catolicismo. E -, “à porta do céu, pálido e triste, muito choroso, muito arrependido” –, admite: “andei, no mundo, sempre ao mal entregue”. 
 
São Pedro ouve aquilo e chega a dizer: “Entra!”. Mas, curioso, por causa dos lamentos do defunto, pergunta o que ele fazia, na Terra. O morto informou: “Eu fui juiz em terra brasileira”. Num segundo, São Pedro fica furioso. Grita com ele. E, fecha-lhe definitivamente a porta do céu. 
Título do soneto: “Justiça brasileira”. 
 
Era evidente, naqueles versos esquisitos, que São Pedro sabia de algo relacionado com nossos juízes. De que João Maluco estava a par, pois se divertia ao declamar o soneto. Isto, naqueles anos 20 – os da prisão de Orestes Barbosa. Algo, que, quarenta anos depois, ainda provocava a descrença de Saracura nas autoridades. E não deixou de existir, hoje. Pois, há poucos dias, indignou um representante de São Pedro, na capital paulista – monsenhor Júlio Lancelotti. A ponto de levá-lo a fazer uma manifestação pública de protesto. Trata-se sempre do inextinguível o gosto dos juízes, pagos com dinheiro público, pelo desfrute de privilégios. Mesmo quando, como é sabido, nos postos de saúde de São Paulo, faltam vacinas para o combate do surto de febre amarela. 
 
(Na ilustração, Orestes Barbosa num chão de estrelas, em caricatura de Nássara)  
 
 

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