Para Karim Aïnouz, é como uma repetição da história, mas não como farsa. Nesta segunda-feira, 20, ele estará de volta a Cannes para apresentar seu novo filme, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, na mostra Un Certain Regard. “Em 2002, estreei meu primeiro longa, Madame Satã, em Cannes, também em Um Certo Olhar, e foi numa segunda-feira.” Ao longo desses 17 anos, Aïnouz firmou-se como um dos grandes autores brasileiros de sua geração, com filmes como O Céu de Suely e o visceral Praia do Futuro. Agora, ele volta com outro retrato de mulher, ou mulheres, no plural. Embora baseado num romance – de Martha Batalha -, o filme tem muito de autobiográfico.
Quando sua mãe morreu, vendo-a ser pranteada pelas amigas, Aïnouz não pôde deixar de pensar como teria sido a vida daquelas mulheres. Como era a primeira vez de uma mulher nos anos 1950? “Minha mãe me criou sozinha, e você pode imaginar o que isso representava numa sociedade machista. Por um momento, em meio à tristeza que me consumia, pensei que todas aquelas mulheres podiam ter histórias similares, senão iguais.” A ideia do filme impôs-se quando ele leu o livro. “Parece a história de minha mãe e minha tia.” Duas irmãs. Uma delas dá o mau passo, ou pelo menos era assim que as coisas eram vistas. As irmãs separam-se e, muito tempo depois, uma delas, viúva, descobre as cartas que o marido nunca permitiu que chegassem até ela.
“Quando li o livro me caiu a ficha de que aquela poderia ser a história da minha família, e que aquelas irmãs poderiam ser minha mãe e minha tia. É um filme de época, mas creio que a questão da mulher continua muito presente, no Brasil e no mundo. Não creio que seja um filme feminista, porque não me cabe, como homem, fazer uma obra militante. Mas sei que é um filme profundamente antipatriarcal, isso sim.” Aïnouz não mede elogios a suas atrizes, Carol Castro e Júlia Stockler. Fez um melodrama rasgado. Promete ao repórter – “Vai fazer você chorar.” Por mais que a história tenha o pé na realidade, trata-se de uma obra de cinema, e de gênero. Aïnouz encarou o desafio de emular os grandes mestres do melodrama – Douglas Sirk, Douglas Sirk, Douglas Sirk. Mas ele também tem uma ligação muito forte com a cultura alemã. Tem casa em Berlim. Logo, nada de estranho que tenha pensado também em Rainer Werner Fassbinder.
“Tudo isso, essas referências, pode parecer pretensioso, mas meu desafio era o mesmo que Fassbinder enfrentou nos anos 1970 e 80. No fundo, no fundo, a origem estética de Eurídice Gusmão talvez esteja nas novelas de Janete Clair, que não tinha medo de ser exagerada. A questão é como trazer esses códigos para um outro público, como atrair o jovem de 2019? Fassbinder reinventou Sirk e falou sobre as mulheres alemãs do pós-guerra e do milagre econômico. Eu falo de mulheres num Brasil agrário e patriarcal, mulheres como a minha mãe, que, sem bandeira nenhuma, enfrentaram o preconceito e o autoritarismo.” Impossível não trazer a conversa para o Brasil atual, com tudo o que está ocorrendo, e não apenas com a cultura, no País. “Acho muito irônico que, justamente quando eles estão tentando, de novo, destruir as estruturas do cinema brasileiro, exista uma presença tão maciça de nossos filmes em Cannes. Quer maior prova de criatividade? Mas o cinema é crítico, os cineastas são considerados de esquerda, e portanto inimigos, então o cinema deve ser destruído. Isso já ocorreu com Collor, e quanto tempo demorou para chegarmos ao momento atual? Se destruírem tudo de novo, quanto tempo demorará para que o cinema, a cultura, se reerga novamente?”
Quando fala na presença brasileira em Cannes, em 2019, Aïnouz refere-se a Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, muito bem recebido na competição, ao filme dele, em Un Certain Regard, e a Sem Seu Sangue, de Alice Furtado, na Quinzena dos Realizadores. O Brasil, por meio da produtora dos irmãos Gullane, também está associado ao italiano O Traidor, de Marco Bellocchio, com Maria Fernanda Cândido, na competição, e Rodrigo Teixeira, que produz o filme de Aïnouz, tem outros dois participando do evento. “A tentativa de desmontagem do cinema brasileiro só pode ter motivação ideológica. De falta de competência e seriedade não nos podem acusar.”