Em 1637, ao publicar Discurso sobre o Método, o filósofo francês René Descartes pavimentou o caminho do racionalismo e da modernidade, pregando uma ideia que marcaria a história do Ocidente: a visão de um homem “mestre e senhor da natureza”. No Oriente, porém, a noção de que a grande força é ela, a natureza, e não o homem, ainda imperaria por pelo menos mais dois séculos. Uma das provas dessa cultura é a obra magistral de Hokusai (1760-1849), gênio japonês do desenho, da gravura e da pintura, cuja carreira é objeto de uma retrospectiva em cartaz no Grand Palais, em Paris.
Nascido em Edo, atual Tóquio, em 1760, Katsushika Hokusai, “o louco pela pintura”, foi um desenhista, pintor e artista popular. Filho de pais desconhecidos, depois adotado aos quatro anos de idade, começou a estudar xilogravura na adolescência, entre 1773 e 1774, e no ano seguinte publicou suas primeiras ilustrações, um total de seis páginas em um romance cômico. Em 1778, passou a membro do ateliê do mestre das estampas e Katsukawa Shunsho, quando desenvolveu a arte dos retratos e evoluiu como artesão desenhista, mas sem que seu valor artístico fosse reconhecido.
A partir de 1794, após adotar o nome de Sori – um dos inúmeros que usaria ao longo da carreira -, a obra de Hokusai ganhou em complexidade e em riqueza. Seu trabalho passou a integrar publicações mais refinadas, o que o fez mais conhecido. Seu destaque então cresceu entre 1805 e 1810, quando sua obra tornou-se referência em livros de leitura, os yomihon, pelo talento expresso no traço firme, mas delicado, e pela técnica precisa no manuseio do nankin. Então ficou mais clara a beleza de suas ilustrações, que consolidavam um estilo marcante: arte refinada sobre temas ordinários, como a vida cotidiana, a mulher e as tradições do Japão, não raro com humor.
O período seguinte, iniciado em 1814, quando adotou o nome de Hokusai manga, marcou sua consolidação como artista admirado e seguido por discípulos, que o elevaram ao status de mestre. É dessa época uma de suas obras mais impressionantes, os Hokusai manga, um conjunto de 15 livros e 3,9 mil desenhos que são em si uma antologia de sua produção artística no período.
Seu talento e sua capacidade de se reciclar como artista e explorar novas fronteiras técnicas ainda o levariam a produzir a sequência mais célebre de seu trabalho. Aprofundando-se nas ukiyo-e, as “estampas do mundo flutuante”, Hokusai desenvolveu suas Trinta e seis vistas do monte Fuji, obras inconfundíveis pelo tema e pela complexidade técnica, que contrasta com sua beleza simples, ressaltada pela força das cores, do vermelho profundo ao azul marinho.
A julgar pela aglomeração de visitantes no Grand Palais, observar sua obra-prima, A Grande Onda de Kanagawa, desperta fascínio, talvez pela oportunidade de admirar o que Valter Benjamin chamou de “aura” de uma peça original, inexistente em suas reproduções. Ali está toda a potência de uma obra que mostra o apogeu de um gênio, com a mesma firmeza e delicadeza do traço de seus primeiros trabalhos, somadas a uma sensibilidade primorosa na escolha das cores, nos dégradés de azul do mar violento ou no céu neutro que completa a paisagem.
É nessa sala, dedicada ao período Litsu, entre 1820 e 1834, que talvez esteja a chave para compreender a riqueza da obra de Hokusai. Muito além da beleza de seus traços e de suas formas e cores, há uma mensagem poderosa: a de que a natureza é a força irresistível, a potência avassaladora e incomparável ao poder do homem – um coadjuvante, e não seu “mestre e senhor”.
Hokusai é, ao lado de Hiroshige e Utamaro, o expoente do “Japonismo”, como o colecionador Philippe Burty denominou em 1872 a onda de influência exercida pela arte japonesa sobre pintores, escultores e escritores da França e, a seguir, de todo o Ocidente. Inaugurada por Félix Bracquemond, primeiro artista europeu a reivindicar a influência, em 1856, quando reproduziu sobre porcelana figuras animais presentes nos Hokusai manga, a tendência se alastrou pelo meio artístico europeu. Nomes como Van Gogh, Gauguin, Monet, Manet, Degas, Renoir, Pissarro, na pintura, Rodin, na escultura e no desenho, ou ainda Baudelaire, Mallarmé, Victor Hugo, Proust, Goncourt e Zola foram influenciados, seja por técnicas e estilos, seja pela sensibilidade e pela estética nova, pela busca da perfeição e do sublime na arte.
A mostra do Grand Palais desliza no bairrismo ao abrir a exposição falando das influências de Hokusai sobre os mestres europeus, e não mergulhar em primeiro lugar na genialidade de seu trabalho em si. Mas esse erro é logo corrigido, e dá lugar a um percurso cronológico inédito e exaustivo de 400 obras do japonês que, morto aos 78 anos, queria viver até os 110 para cumprir sua missão obsedante: transformar em arte “o menor ponto, os menores traços vivos”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.