Aos 27 anos de idade, frequentemente, me sentia farto de viver. Não por causa de alguma frustração grave específica que me tivesse atingido e me fizesse ficar triste. Mas, placidamente. A placidez, neste caso, era um sentimento que não tinha dificuldade em explicar aos amigos. Dizia a eles: “Me sinto como alguém que consumiu toda a variedade de alimentos necessária à saciedade de sua fome. E olha, em seguida, para a mesa colocada à sua disposição, serenamente, em paz consigo, sem precisar retirar mais nada dela”. Sim, não havia amargura em mim. No máximo, um certo cansaço, às vezes, talvez.
Àquela altura, já fora filho de família da classe média, em Belém. Tivera um período como “capitão da areia”, no Ver-o-Peso, quando me pai adoeceu e nosso ambiente familiar se desestruturou bastante. Com 12 anos, preocupado com os sinais de marginalização social que apareciam no meu modo de falar, decidi, sozinho, me internar num seminário salesiano. Via nele um caminho para a recuperação dos valores básicos da minha educação. Mas o seminário parecia medieval, guiado por mentalidade estreita e rígida Por isto, fui para outro, arquidiocesano, com regras mais brandas, sintonizado com a renovação trazida pelo papado de João XXIII. Ali, participei do movimento estudantil secundarista. Do qual, um dos líderes se tornou um amigo-de-vida-inteira. Quando os militares derrubaram João Goulart, ele foi preso. Tornou-se, então, insuportável aquela carga emotiva, resultante de tantas crises pessoais, originárias da família, da Igreja, do Estado. Afundei psicologicamente. Meu médico prescreveu um desligamento completo do mundo em volta. Vinte dias de sonoterapia. Quando levantei da cama do hospital, ele recomendou que saísse de Belém. Assim, aos 17 anos, cheguei a São Paulo. Para iniciar um complexo processo de adaptação. Desafio que começava com o enfrentamento a temperaturas baixas. Zero grau, em algumas noites de inverno. O que se refletia em peças de guarda-roupa jamais vistas antes: jaquetas de pano grosso – as japonas -, cachecol, luvas e gorros para homens, por exemplo. Mas, aos poucos fui encontrando acolhimento caloroso entre pessoas sensíveis que tentavam resistir ao sufocamento político imposto pela Ditadura Militar.
Dez anos depois, tinha intimidade com a cidade maior que a da maioria dos paulistanos. Graças ao Jornalismo, onde pude escapar da condição de jovem mais ou menos imprestável para ofícios sérios porque ocupava meu tempo unicamente com leituras de Filosofia e Literatura. Felizmente – como iria descobrir, surpreso, depois -, as leituras desenvolviam a capacidade de expressão verbal escrita. Até aquela época me restringira ao espaço por onde transita um candidato a padre. Nunca tinha sequer entrado num bar. E, admitido na função de repórter, num dia, ia ao Palácio dos Bandeirantes, em outro, à Gafieira Som de Cristal. Ora almoçava com um ator norte-americano, no restaurante do Terraço Itália, ora, sem dinheiro, com um morador de rua, no balcão de uma casa de sopas da avenida São João. Numa ocasião, estava com o presidente da Caixa Econômica, num carro oficial, escoltado por motociclistas batedores da polícia, em outra, me equilibrava na frente de um cobrador de ônibus, para ouvi-lo falar sobre o colega assassinado em serviço.
Por quase três anos circulei diariamente pelos estúdios de canais de televisão. Mas, o regime de trabalho full-time da Editora Abril, onde permaneci por mais tempo, me levou a um beco sem saída. Ganhava, com 20 anos, o correspondente a 10 salários mínimos, não dispunha de tempo para estudar. E isto prejudicou a qualidade dos meus textos. Fiquei um período confuso, desnorteado. Até que decidi sumir. Durante anos, me recolhi a quartos de hotéis baratos, um deles endereço de trabalhadoras do sexo nos seus momentos de descanso, me mantendo com a baixa remuneração dada a quem fazia revisão de textos jornalísticos. E, voltei a estudar. Desesperadamente. Saí deles formado em Letras e aprovado num disputado concurso de ingresso ao magistério de São Paulo.
Mas, cheguei aos 27 anos, como já escrevi, com aquela sensação de já ter vivido tudo. Ou, pelo menos, o bastante para mim. Como poderia saber que, hoje, 42 anos depois, estaria escrevendo este texto, após ter casado, procriado, publicado livros, produzido monografia e tese, circulado pela rede de ensino superior do País, permanecido em longa temporada como docente e pesquisador na Amazônia? E – o mais importante -, como poderia saber que estaria sentindo o coração animado, como a criança que acorda e tem diante de si um novo dia para inventar modos gostosos de passar as horas? Apesar dos cinco stents que ajudam a bombear este meu órgão.
Sei por que me sinto assim. Pois, há apenas três dias, tive “uma visão clara da natureza última da existência”, como os zen budistas explicam seu “kensho”. A vida é um tempo só. Um agora permanente. Um presente absoluto. Do qual, passado, presente e futuro são somente modulações. A confirmação disto eu, ateu há tanto tempo, fui encontrar em Santo Agostinho, doutor da Igreja.
Portanto, não tenham dúvida, 69 anos de vida cabem, inteiramente, concentrados, num susto. Ou numa percepção. Como a de que o rosto da Kamila é levemente mais largo que o de sua irmã gêmea, Ketlen. Que alívio ter percebido esta diferença tão sutil! Agora, não serei mais atacado por aquela vergonhosa agonia que me assaltava ao me enganar no uso dos nomes delas. E isto, de algum modo, vai nos aproximar mais. Porque, há um mês, vivo com as gêmeas e o Daniel de 12 anos, numa casa. Todos, filhos da Cláudia, minha amiga linda, parceira e camarada, para usar as expressões de Vinicius de Moraes.
Nesta pequena comunidade, cada um de nós está se enraizando em novas convivências humanas. E, posto que um ser humano correspondente ao conjunto de sua rede de relações sociais, vamos, aos poucos, nos tornando novas pessoas. Livres do cansaço do que fôramos antes.