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Kit covid é perda de tempo, diz médico que fez parecer rejeitado pelo governo

O professor de pneumologia Carlos Carvalho, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e outros pesquisadores coordenados por ele preparam um pedido de revisão da nota técnica sobre o tratamento da covid-19 no Sistema Único de Saúde (SUS), assinada em janeiro pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Neto.

O texto oficial, que defende o uso de medicamentos ineficazes contra a doença, como a cloroquina, e nega a certeza dos benefícios das vacinas, desencadeou um abaixo-assinado online, em repúdio à nota de Angotti Neto, já assinado por mais de 80 mil pessoas.

A pedido do ministro da Saúde Marcelo Queiroga, Carvalho coordenou a análise das evidências científicas sobre o tratamento hospitalar e ambulatorial da covid-19 durante oito meses. As diretrizes que contraindicam o uso de medicamentos sem eficácia, como o chamado kit covid, foram aprovadas em dezembro pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS).

Em vez de publicar as diretrizes aprovadas pela comissão subordinada à sua secretaria, Angotti Neto emitiu a nota técnica no sentido contrário. Em entrevista ao <i>Estadão</i>, o professor Carvalho avalia a decisão.

<b>Qual foi o pedido do ministro Marcelo Queiroga quando o sr. foi convidado a coordenar o grupo que prepararia as diretrizes de tratamento da covid-19?</b>

O ministro Marcelo Queiroga solicitou que fosse feita uma unificação das informações e orientações para familiares, pacientes e equipes de saúde que atendiam pessoas com covid-19. Ele deixou bem claro que isso fosse feito com base na ciência, nos melhores conhecimentos científicos nacionais e internacionais. A primeira coisa que ele disse foi que não precisávamos discutir vacina porque isso era ponto pacífico e ele queria ser reconhecido como o ministro que vacinou o Brasil. Ele acredita que a imunização é a solução para a pandemia. Nunca foi solicitado que o nosso grupo emitisse qualquer parecer sobre vacina.

<b>Como foi composto esse grupo?</b>

Mais de 150 pesquisadores de diferentes sociedades médicas e instituições participaram da elaboração dessas diretrizes. O resultado desse trabalho foi apresentado nas reuniões da Conitec e aprovado por unanimidade. Nosso grupo foi elogiado mais de uma vez pelo plenário da Conitec por causa da qualidade do documento que nós estávamos gerando.

<b>O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Hélio Angotti Neto, fez alguma solicitação?</b>

Em meados de 2021, ele solicitou que fosse acrescentada uma avaliação sobre o tratamento pré-hospitalar e indicou meia dúzia de pessoas para participar do grupo. Pessoas que, na visão dele, poderiam contribuir com a discussão. Aceitamos as indicações e começamos a fazer as discussões sobre tratamento pré-hospitalar.

<b>O que aconteceu na reunião de outubro da Conitec, quando a votação acabou empatada por 6 a 6? </b>

Quando geramos o documento do tratamento pré-hospitalar, alguns participantes da plenária da Conitec começaram a reclamar de coisas que, no passado, haviam elogiado. Como a metodologia que tínhamos usado e o cuidado que tivemos. A representante da Secretaria de Atenção Especializada em Saúde (Saes) do Ministério da Saúde, Assuntos Estratégicos (SAES), Maria Inez Gadelha, disse que o nosso grupo não tinha competência para fazer as diretrizes.

<b>Como o senhor reagiu? </b>

Rebati o que ela disse na hora, mas isso nos deixou bastante chateados. O grupo coordenado por mim é composto de professores das melhores universidades do País. Se essas pessoas do Ministério da Saúde achavam que não tínhamos competência, deveriam ter avisado antes. Assim a gente não perderia tempo. A votação acabou empatada e foi para consulta pública. Revisamos o documento. Ele voltou para a Conitec, foi aprovado por 7 a 6, mas o secretário Hélio Angotti não publicou a diretriz. Resolveu pedir uma nova consulta pública, que aconteceu no dia 28 de dezembro, entre o Natal e o Ano Novo.

<b>O senhor chegou a falar com o secretário depois disso?</b>

Enviei uma mensagem perguntando se ele precisaria de algo a mais. Ele respondeu que todas as pendências estavam resolvidas. Entendi que iria publicar a diretriz aprovada pela Conitec. No final de janeiro, ele publica uma nota técnica rejeitando o nosso trabalho.

<b>Qual a avaliação do senhor sobre essa nota técnica?</b>

O secretário rejeitou o nosso trabalho. O mais absurdo da nota técnica foi a tabela que menciona a vacina, algo que o ministro não havia pedido que fosse discutido. Vacina nunca esteve na nossa pauta. Nessa nota técnica, o secretário compara cloroquina com vacina (uma forma de profilaxia) e técnicas como a ventilação não-invasiva e a colocação dos pacientes graves na posição prona. Os estudos científicos que avaliam essas técnicas não são comparáveis com estudos de medicamentos. O secretário fez uma salada e incluiu uma tabela totalmente inadequada e absurda.

<b>Isso provocou uma reação imediata das sociedades científicas. O que houve depois?</b>

O secretário decidiu tirar o bode da sala. Retirou a tabela, mas manteve o conteúdo da nota técnica. Isso não resolve. No texto, ele dá a entender que o nosso grupo fez um trabalho inadequado porque não indicamos tratamento algum para a covid-19. Como vamos indicar um tratamento que não existe? Essa nota do secretário é coisa sem o menor cabimento. Os motivos que ele alega são facilmente contrapostos.

<b>Vocês estão preparando um recurso para contestar essa nota?</b>

Estamos fazendo uma resposta e um pedido de revisão dessa nota técnica. Solicitamos a publicação das diretrizes que contraindicam o uso de medicamentos sem eficácia para a covid-19. Quanto mais cedo isso ocorrer, a população e os profissionais de saúde poderão ser informados com um documento validado pelo Ministério da Saúde para, finalmente, servir de apoio ao tratamento dos pacientes de covid-19.

<b>Quem vai decidir sobre o recurso?</b>

Dentro do rito processual do Ministério da Saúde, o recurso tem que ser impetrado para o secretário. Estamos pedindo que ele volte atrás, retire a nota técnica e publique as diretrizes aprovadas pela Conitec. Ele deve avaliar o recurso e enviar ao ministro, que tem a palavra final. O ministro Queiroga terá que decidir se vai apoiar o secretário Hélio Angotti ou os pesquisadores.

<b>Qual é a atitude que o senhor espera do ministro Queiroga?</b>

Espero que nosso trabalho, realizado ao longo de oito meses de discussões, com o objetivo de melhorar a assistência da população brasileira no SUS seja valorizado e as diretrizes sejam publicadas.

<b>Esse episódio indicou uma politização da Conitec, um órgão que deveria tomar decisões técnicas. O que o senhor observou ao longo desse processo?</b>

Desde maio de 2021, participei de praticamente todas as reuniões da Conitec. Durante as discussões, observei o trabalho técnico dos membros que compõem a plenária e até aprendi muito com eles. A agressividade dos representantes de algumas Secretarias do Ministério da Saúde foi uma surpresa para mim na última reunião. Não cabe a mim julgar se foi uma pressão ou imposição política. Não acredito que tenha havido ingerência por parte do ministro.

<b>Por que o senhor acredita que a ingerência não partiu do ministro?</b>

O ministro nunca me pediu para "aliviar", tirar ou colocar alguma coisa no parecer. Como ele me convidou para coordenar o grupo de pesquisadores, seria estranho ele aprovar um documento que diz que esse grupo que ele ajudou a criar não tem competência para fazer a diretriz. O ministro foi presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Espero que ele continue fiel aos princípios da ciência. A não ser que tenha acontecido alguma coisa no meio do caminho que eu desconheço.

<b>Qual é o prejuízo que a insistência do governo federal no kit-covid causa aos pacientes?</b>

Isso alimenta a desinformação. Cria uma falsa sensação de segurança. A pessoa acha que vai ficar protegida. Não existe base científica para o uso do kit covid. Para os pacientes que não precisam de internação e oxigênio, não há medicamento autorizado no Brasil. Saíram alguns estudos nos últimos quatro meses que mostraram que alguns antivirais e anticorpos monoclonais têm o seu papel na prevenção da progressão da doença, mas essas drogas não têm autorização da Anvisa para serem usadas no país. Além disso, são medicamentos caríssimos.

<b>Nesse episódio do kit covid, o que o Brasil não pode esquecer?</b>

Não podemos esquecer como perdemos tempo discutindo um assunto injustificável. Faz um ano e meio que a ciência comprovou que o kit covid não seria útil. Mesmo assim, ficaram insistindo com tratamentos alternativos sem sentido.

<b>O senhor lamenta ter sido envolvido nessa confusão?</b>

Ainda não me sinto derrotado. Espero que o documento que estamos produzindo para pedir a revisão da nota técnica e a publicação das diretrizes aprovadas pela Conitec tenha sucesso. Não acredito que essa seja uma batalha perdida. A razão está do nosso lado. Espero que o trabalho dos pesquisadores que produziram as diretrizes seja reconhecido. Só vai valer a pena ter passado por tudo isso se a população vier a se beneficiar da informação das diretrizes. Se os colegas puderem usar o melhor conhecimento científico.

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