O líder Kayapó Bepkororoti, mais conhecido como Paulinho Payakan, morreu no início da manhã desta quarta-feira, 17, no município de Redenção, na região sudeste do Pará. Após nove dias internado, o indígena entrou para a estatística dos óbitos causados pelo novo coronavírus nas aldeias do Brasil. Atuante nas causas ambientais, o indígena esteve à frente da luta contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na Bacia do Rio Xingu, em 1980.
A morte do Payakan foi confirmada pela Secretaria Estadual de Saúde Pública do Pará (Sespa). Em nota, a pasta lamentou a perda do líder e se solidarizou com familiares e amigos da vítima. O indígena de 67 anos estava internado no Hospital Regional Público do Araguaia desde o dia 9 de junho, onde recebeu os cuidados necessários para o tratamento da covid-19, mas faleceu às 6h50 desta quarta-feira. O líder indígena deixa esposa e três filhos.
O corpo de Paulinho Payakan será sepultado na aldeia de origem, em Ourilândia do Norte, com uma cerimônia mais breve e seguindo os protocolos de segurança estabelecido pelo Ministério Público Federal (MPF) para evitar o contágio do vírus nas tribos. Dentro da cultura Kayapó, durante os funerais de seus entes, a tribo realiza pinturas no corpo de quem morreu. No entanto, em caso de morte pela covid-19, esse tipo de cerimônia fica proibida em todas as aldeias brasileiras. A família do indígena assinou um termo se comprometendo não tocar no corpo durante o enterro.
Uma das melhores amigas do líder e companheira de luta das causas indígenas, Marcia Kambeba, representante do povo Kambeba no Pará, explica sobre as cerimônias tradicionais. "Existem três tipos de rituais de grafismo: os fúnebres, os de nascimento e os de tristeza. Acreditamos que a espiritualidade dos desenhos acompanhará o espírito dos guerreiros para outras vidas. Mas, devido à causa da morte, por ser covid-19, com alto contágio, enterramos logo o corpo", disse.
Márcia lembra de Payakan – que, segundo ela, estava à frente de seu tempo. "Ele era líder sem igual, lutava pela natureza, pelos territórios, foi reconhecido pela ONU Organização das Nações Unidas. Foi um homem destemido até o fim. Hoje, toda a comunidade indígena do Brasil e do mundo perde uma grande representante dos povos tradicionais".
Ela também lamenta sobre a realidade das aldeias diante da pandemia do novo coronavírus. "São muitas pessoas vivendo juntas umas das outras, não há um distanciamento como deveria ter. Temos aldeias com a contaminação de 60% dos moradores. O vírus chega quando eles vão à cidade grande. E agora, com o recebimento do Auxílio Emergencial, a covid se espalhou ainda mais", disse.
<b>Pesar</b>
A notícia da morte de Paulinho Kayapó foi comentada por políticos e entidades de defesa do meio ambiente. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em nota, garante que morreu "uma enciclopédia de conhecimento tradicional". Segundo a Coiab, Payakan saiu ainda jovem de sua aldeia para trabalhar com a Fundação Nacional do Índio (Funai), conhecendo cidades e a vida fora de suas terras como forma de pesquisar o mundo dos não-indígenas (os kuben).
Quando retornou ao seu território, já como liderança, teve participação nas discussões da Assembleia Constituinte que asseguraram a inclusão dos artigos 23 e 232 da Constituição Federal, de 1988, referentes aos povos tradicionais no Brasil.
Entre as várias homenagens, foi capa da revista Parade (Washington Post) com o título O homem que poderia salvar o mundo. Em 2016, ele foi eleito presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa). Com frequência em Brasília, Payakan também lutou em diversos movimentos, tendo presença marcante nos acampamentos Terra Livre.
<b>Acusação de estupro</b>
A história do líder também foi marcada por uma condenação de estupro. Em segunda instância, a Justiça do Pará condenou Payakan a seis anos de prisão em regime fechado sob acusação de atentado violento ao pudor. Em maio de 1992, o indígena foi acusado de estuprar uma estudante de 18 anos. Sua esposa, Irekran Caiapó, também teria participado do ato, segundo a vítima, mas foi condenada com a pena abrandada, em regime semi-aberto. Payakan chegou a dizer em depoimento que teria feito o ato a pedido da esposa. Os exames médicos realizados por ordem do Ministério Público Federal asseguram que a jovem foi violentada.
A acusação de estupro contra o casal ganhou repercussão internacional à época por ter sido revelada na semana em que se realizava no Rio de Janeiro a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, a ECO-92. Posteriormente, Payakan deixou sua residência no município de Redenção e passou a morar na aldeia Kayapó Ulkré, em Ourilândia do Norte.
O indígena era respeitado no exterior por ter recebido os prêmios Global 500, da ONU e da Sociedade Para um Mundo Melhor, dos EUA – este ao lado do ex-presidente norte-americano Jimmy Carter.
<b>Coronavírus nas aldeias</b>
Conforme a Secretaria de Saúde do Pará, há 529 indígenas diagnosticados com a covid-19 no Estado. Destes, 29 foram a óbito. O governo estadual informou que já disponibilizou alas específicas para a comunidade indígena nos hospitais de campanha, com leitos exclusivos em Belém, Marabá, Santarém e Breves. "Além disso, o Estado, junto com a Sesai, Ministério da Saúde e Exército, oferece dentro das aldeias, com equipes médicas da Polícia Militar, consultas, visitas domiciliares aos indígenas idosos, testes rápidos e medicamentos para tratamento de sintomas leves e moderados", disse a Sespa. A pasta confirma que enviou a todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) máscaras de proteção e álcool em gel 70%.
Questionada pelo <b>Estadão</b> sobre as ações do combate à doença na região, a Funai garantiu que está presente no território de Altamira, por meio da Coordenação Regional Centro Leste do Pará. "A atuação desta unidade descentralizada tem sido no sentido de promover a permanência dos indígenas nas aldeias durante a pandemia de covid-19, como forma de evitar o contágio pelo novo coronavírus. Para isso, vem trabalhando para garantir a segurança alimentar das comunidades em situação de vulnerabilidade social", explicou.
A Funai elaborou áudios em diversas línguas indígenas explicando aos povos tradicionais da região a ameaça que o vírus representa. "Ressalta-se que foi realizado pela Coordenação Regional um levantamento dos indígenas que estão no CadÚnico e possuem direito ao auxílio emergencial de R$ 600, a fim de realizar um controle da necessidade eventual de cada comunidade vir até a cidade para sacar o benefício, bem como articular um cronograma de retirada."