Mesmo sem nome, Letieres Leite, batizado pelo pai apenas com os dois sobrenomes da família, foi além do que o roteiro parecia oferecer. Um dos oito baianinhos de Dona Maria do Carmo dos Santos Leite e Seu Antônio Letieres Leite, ele começou a estudar música mais por vontade do que obrigação. Sentiu nas ruas e nos terreiros de Salvador o acento dos toques africanos, aprendeu tudo por si e foi parar no Conservatório Franz Schubert de Viena, Áustria. Agora com nome e sobrenome, diz que nada foi maior do que a missão que se colocou à sua frente. “Vai ser o maior desafio da minha vida.”
Letieres vai rearranjar o álbum Coisas, que o maestro pernambucano Moacir Santos (1926-2006) criou para ficar para a história da música brasileira, em 1965. As dez faixas estão sendo ensaiadas para serem mostradas dias 16 e 17 de setembro, no Sesc Pinheiros. Ainda não há previsão para que as noites sejam registradas em CD ou DVD.
O “desafio” de Letieres não é expressão de efeito. Mexer em uma composição encadeada sem desperdícios de notas, com células que remetem às matrizes africanas não só pelo ritmo (referência mais visível quando se fala no assunto), mas também por ideias melódicas e harmônicas, é como um violonista que canta querer refazer o álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. Coisas, com dez temas instrumentais numerados ao longo do disco sem ordem cronológica, jamais ganhou imersão tão corajosa.
O projeto é do produtor, jornalista e DJ Ramiro Zwetsch, que pensou em levar Coisas para Letieres em 2015, quando o álbum completaria 50 anos. “Como Letieres, Moacir fazia a liga da música erudita brasileira com ritmos de matrizes africanas.” Sua aposta tem bons argumentos para funcionar. Dos arranjadores vivos, nenhum pode entender mais do equilíbrio entre sons das ruas africanas e o conhecimento acadêmico com a mesma perspectiva. “As melodias vão estar intactas, mas vou aproximar os entornos mais dos toques que eu conheço. Criei partes novas, fiz Moacir (pernambucano) passar pela Bahia”, conta.
A primeira revisita a Moacir foi feita em 2001, quando os músicos Mario Adnet e Zé Nogueira produziram o grandioso álbum Ouro Negro. Com participações de nomes como Gil, Milton Nascimento, João Bosco, João Donato e Ed Motta, o projeto reacendeu o nome de Moacir e de sua genialidade, com maior fidelidade aos temas originais. Em 2005, um CD e um DVD foram registrados em show no mesmo Sesc Pinheiros.
Caminhos cruzados
A luta de Letieres o legitima a falar de Moacir com propriedade. Seu pensamento pedagógico, usado para criar o disputado projeto mirim Rumpilezzinho, em Salvador, e desenvolver um método que foge do ensino convencional de música no País, aponta para o mesmo caminho trilhado por Moacir. Ora, questiona o professor, se toda a música brasileira tem como pedra fundamental as matrizes africanas, por que o ensino de música brasileira ignora esse fato? E o que ele tem a dizer é mais do que a ideia exótica ou tribal que criamos de música africana. “Estou falando da música de Tom Jobim, do violão de João Gilberto, da composição de Chico Buarque. Elas todas mostram variações no plano da origem matricial negra”.
As demolições de tabus começam aqui. Não existe “uma África”, fala Letieres. Não se trata de uma nação uniforme. Cada povo oferece ao mundo elementos diferentes, cada país tem sua música particular. “As aulas no Rumpilezzinho são acompanhadas por professores de História. Não podemos mais simplesmente continuar dizendo que tudo vem da África.”
A segunda questão redutora, que impede o continente mãe de ser academicamente aceito, está no fato de que tudo o que vem de lá já parece estar culturalmente absorvido e intelectualmente compreendido. “É uma cultura de elaboração científica diferente da europeia, mas só a associamos ao entretenimento.”
Letieres tem ainda críticas aos modelos de ensino, à forma como as escolas em geral são organizadas no Ocidente. “A estrutura das escolas, que obrigam seus alunos a usar uniformes, tem a ver com o militarismo prussiano. O professor não tem de ficar na frente dos alunos. Isso é fruto de uma ideia para unificar o pensamento. Essa forma de organização está toda errada. Sentamos em roda para aprender.” Ele pergunta sobre qual seria a principal matéria a ser ensinada nas escolas. O repórter responde “música”. “Errado. Dança. E não a dança coreográfica, mas a conexão do corpo com o espaço, com o universo. Não existe vida sem movimento. E, sem dança, não há movimento.”
Questionado se acredita na frase de que só os autodidatas seriam livres, já que seu conhecimento teria sido forjado por informações que não seguiriam padrões, Letieres reage. “Não acredito nisso. Um músico de rua sem o estudo formal ficaria limitado. Um músico acadêmico sem a rua ficaria limitado. E Moacir Santos é o maior exemplo desse acordo entre a academia e a rua.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.