Incrível,
porém verdadeiro. Cidadãos brasileiros estão sendo induzidos a praticar o
“dedurismo”, denúncia contra pessoas físicas e jurídicas e, desse modo, a fazer
parte de um exército de agentes especiais que o Conselho de Controle de
Atividades Financeiras (COAF), órgão do Ministério da Fazenda, está
organizando. Não se trata, como se pode pensar, da “delação premiada”, que réus
usam para obter vantagens judiciais em processos criminais a que se submetem. A
iniciativa, que agita prestadores de serviços e operadores do Direito, chama a
atenção pelo abuso contra princípios constitucionais. Duas resoluções baixadas
pela entidade (Resoluções 24 e 25, de janeiro passado), sob o escudo do combate
aos crimes de lavagem de dinheiro, constituem o eixo da polêmica. Obrigam
pessoas físicas ou jurídicas, que prestem serviços de assessoria, consultoria,
contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência em operações, a fazer um
cadastro de clientes e guardá-lo por cinco anos. A par da exigência de declarar
bens ou serviços prestados no valor igual ou superior de R$ 5 mil, o “agente”
que o Conselho está criando é obrigado a “denunciar” seu cliente, caso, seis
meses depois, este fizer nova operação que implique valor igual ou superior a
R$ 30 mil. E se o prestador se recusar a entrar nesse “grupamento”? Será
submetido à multa de até R$ 200 mil, cassação do registro profissional e
vedação do exercício da atividade.
É mais que sabido que cabe ao Estado a tarefa de investigar, fiscalizar, controlar
e combater todas as veredas que levam às ilicitudes, a partir do tráfico de
drogas, de armas, lavagem de dinheiro, peculato, furtos e roubos. Passar o
Brasil a limpo deve ser anseio contínuo dos órgãos públicos, o que demanda
medidas e ações para defender a sociedade, investigar as máfias que agem nos
intestinos do Estado e extirpar os tumores que corrompem os sistemas
produtivos. A premissa se torna mais premente ante o paradigma do “puro caos”,
que o professor Samuel P. Huntington tão bem descreve em seu Choque de
Civilizações: “uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados
fracassados, anarquia crescente, uma onda global de criminalidade, máfias
transnacionais, cartéis de drogas, crescente número de viciados, debilitação
generalizado da família, declínio na confiança e na solidariedade social em
muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver
predominando em grande parte do planeta”. Tal moldura sugere a maximização de
energias por parte das estruturas que executam controles na frente das
finanças. Mas qualquer ação ou medida há de se ajustar aos primados consagrados
na Carta Magna.
Emerge, aqui, a primeira indagação: a ordem de obrigações e punições emanadas
nas duas resoluções do Conselho de Controle de Atividades Financeiras fere ou
não princípios da livre iniciativa e do sigilo de dados pessoais, garantidos na
Constituição? O tributarista Raul Haidar lembra que apenas leis abrigam o poder
de gerar obrigações e sanções. O princípio de que o direito deve se fundar na
Constituição, jamais em medidas, decretos, resoluções e até em leis
consideradas inconstitucionais, é um dos mais sagrados das Nações democráticas.
Desvios e ilegalidades que ocorrem na vida institucional revelam muito sobre o
estado civilizatório que o país atravessa. É o caso de enxergar um viés
politiqueiro na planificação e execução de políticas de monitoramento do
universo dos negócios, não se descartando a hipótese de que grupos, hoje
imperando na administração pública, se esforçam para impor uma visão
onipotente, onisciente e onipresente. A onipresença fica patente na intenção
escancarada de multiplicar os olhos do Big Brother, não deixando nenhum espaço
fora de sua vista (George Orwell ficaria embasbacado); a onisciência se
apresenta no modo unívoco de entender que o Estado encarna a moral, é a razão
efetivada, um Todo ético organizado, na expressão de Hegel, não cometendo
erros; e a onipotência se apresenta na atitude rude de rasgar a letra
constitucional.
Mais uma observação. Ao contrário da cultura anglosaxã, de rígida obediência à
normas, a cultura tupiniquim usa frequentemente as curvas para se moldar aos
climas impostos. Será que os inventivos controladores do Conselho não
imaginaram o cadastramento de operações falsas, malandragem para atrapalhar
concorrentes? Perfis mafiosos ou de má fé não produzirão denúncias apenas para
embaralhar as cartas do jogo? É razoável a hipótese de que alguns, entre esses
“agentes do Estado”, agirão em causa própria, usando a norma para preencher
conveniências pessoais. Na conta das probabilidades, não se descarta a
beligerância entre amigos e clientes, quando uns descobrirem que outros
apontaram o “dedo duro”.
Nessa moldura, entra bem a imagem de Sólon, um dos sete sábios da Grécia
antiga, também conhecido como o pai da Democracia. Perguntaram a ele se as leis
que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: “dei-lhes as melhores
que podiam eles aguentar”. A resposta do filósofo exprime moderação e clareza
mental, valores que construíram a grandeza de Atenas. Ao longo da história da
civilização, as Nações beberam nessa fonte de conhecimento, produzindo boas
leis, plasmando bons princípios e sólidos valores sobre os quais repousam o
edifício das liberdades e os fundamentos do Estado Democrático.
É o caso de indagar aos dirigentes do COAF se as disposições que outorgaram aos
brasileiros são condizentes com o império do Direito ou desenham a imagem do
Leviatã, o monstro bíblico, cruel e invencível, plasmado pelo ideário
absolutista de Thomas Hobbes. Talvez seja o caso de Suas Excelências refletirem
sobre a lição de Montesquieu em seu Espírito das Leis: “a única vantagem que um
povo livre exerce sobre outro é a segurança que tem de que o capricho de um ou
de outro não lhe tirará seus bens ou sua vida. Um povo com esse bom senso seria
tão feliz quanto um povo livre”.
Gaudêncio Torquato, jornalista,
professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter:
@gaudtorquato