Calou-se a voz daqueles que não podiam falar. Um dos principais nomes do ensaísmo político da América Latina, o jornalista e ficcionista uruguaio Eduardo Galeano morreu nesta segunda-feira, 13, pela manhã, em Montevidéu, vítima de um câncer que começou no mediastino e virou uma metástase feroz. Fazia semanas que estava internado em um hospital e morreu aos 74 anos.
Autor de obras referenciais, como “As Veias Abertas da América Latina” (1971) e “Memória de Fogo” (1982-86), Galeano gostava de transcender gêneros ortodoxos, combinando narrativa documental, jornalismo, análise histórica e política. O que os une é sua obsessão pela memória, “sobretudo a dos condenados ao esquecimento”. Excelente observador, Galeano, também um apaixonado por futebol, lembrava a doce subversão que guardava de suas viagens: “Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.”
Nascido na capital uruguaia em 3 de setembro de 1940, Eduardo Germán María Hughes Galeano era de uma família católica de classe média de ascendência europeia. Menino, sonhava ser jogador de futebol, esporte que inspirou diversos de seus escritos (como “O Futebol de Sol a Sombra”, de 1995). Sem talento com a bola, foi pintor de letreiros, mensageiro, datilógrafo e caixa de banco. Aos 14 anos, vendeu seu primeiro trabalho artístico: uma charge política para o jornal El Sol, do Partido Socialista.
A carreira jornalística foi iniciada no início da década de 1960, quando foi editor do “Marcha”, influente jornal semanal que contava com colaboradores do gabarito de Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. Dirigiu também o diário “Época” e foi editor chefe de um jornal universitário durante dois anos.
Em 1973, com o golpe militar no Uruguai, Galeano foi preso e, depois, forçado a se exilar na Argentina, onde lançou a revista “Crisis”, sobre cultura. Em 1976, com o acirramento da violência no governo militar argentino liderado pelo general Jorge Videla, seu nome é colocado na lista dos esquadrões da morte. Assim, temendo pela vida, Galeano exila-se na Espanha, onde deu início à trilogia “Memória do Fogo”. Só voltou ao Uruguai com a redemocratização, em 1985.
“A morte, muitas vezes, mente – quando se imagina que uma pessoa morreu, ela continua viva na memória, nas conversas, nas decisões” – era dessa forma que Galeano definia a resistência das pessoas que lutaram contra regimes totalitários. Frases de efeito, aliás, eram sua marca registrada. As palavras de Eduardo Galeano sempre surpreendiam, pois ele tanto as usavas para transmitir a mais pura poesia (“O travesseiro é como uma máquina capaz de ler sonhos”) como para causar polêmicas (“O presidente venezuelano Hugo Chávez é bombardeado por suas virtudes”).
Galeano, no entanto, será principalmente lembrado por sua principal obra, “As Veias Abertas da América Latina”, que marcou a literatura e a resistência do continente. Ali, ele impunha uma questão primordial naqueles anos 1970: o subdesenvolvimento é uma etapa no caminho do desenvolvimento ou é consequência do desenvolvimento alheio? “Uma criança e um anão se parecem, mas não são a mesma coisa”, disse ele ao jornal O Estado de S.Paulo em 2005, quando refletiu sobre aquela obra. “Não estamos vivendo a infância do capitalismo, somos um produto deformado do desenvolvimento alheio. Não há nenhuma riqueza que seja inocente da pobreza dos outros. O abismo que separa os que têm dos que necessitam é hoje muito maior do que quando eu escrevi o livro.”
“As Veias Abertas…” analisa a história da América Latina desde o período colonial até a contemporaneidade, argumentando contra o que considera como exploração econômica e política do povo latino-americano primeiro pela Europa e depois pelos Estados Unidos. O livro tornou-se um clássico entre os membros da esquerda latino-americana.
Apesar de sempre ser badalado por esse livro, Galeano revelou-se cético diante da própria obra. “Depois de tantos anos, já não me sinto mais ligado a esse texto”, disse o escritor em 2014, em Brasília, durante a 2ª Bienal do Livro e da Leitura. “O tempo passou e descobri diferentes maneiras de conhecer e de me aprofundar na realidade. Considero uma etapa superada. Se eu relesse a obra hoje, cairia desmaiado, não iria aguentar”, completou, em tom de brincadeira. “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é extremamente árida, e meu físico já não a tolera.”
Ainda em Brasília, em entrevista ao Estado, Galeano reafirmou sua paixão pelo futebol, apesar da politicagem ter interferido decisivamente na organização do esporte.
“Há ditaduras visíveis e invisíveis. A estrutura de poder do futebol no mundo é monárquica. É a monarquia mais secreta do mundo: ninguém sabe dos segredos da Fifa, fechados a sete chaves”, disse. “Os dirigentes vivem como em um castelo muito bem guardado. E os protagonistas do futebol, os jogadores, trabalham como macacos de circo, ou seja, não são os receptores dos benefícios dos espetáculos que nos brindam – acredito que sejam fortunas, pois as contas são secretas. E os atletas atuam pelo prazer de jogar, o que é importante. Eu rogo a Deus para que os jogadores não percam esse prazer, pois, nos últimos anos, eles vêm sendo condicionados a apenas ganhar, o que resulta em mais dinheiro.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.